Resenha: Rumo às Estrelas (Ad Astra) (2019)
Duas obras do começo do
século XX deixaram sua marca: a primeira foi o romance Coração das trevas, de
Joseph Conrad, sobre um oficial inglês procurando o paradeiro de um colega
desaparecido no continente africano; e a segunda foi O homem das mil faces, de
Joseph Campbell, um estudo sobre as relações entre diferentes mitos. Ambas as
obras impactaram o restante da arte desde então: a primeira ao elaborar a
progressiva degradação do ser humano, como visto em Apocalypse Now, e a segunda
ao estruturar o avanço do ser humano a um status heroico, como em Star Wars.
Digo isso porque Ad Astra é um filme que combina ambas as abordagens.
O filme trata de um
astronauta, Roy McBride, que após sobreviver a um acidente na estação espacial
em que trabalhava é chamado pelo governo a tentar localizar o paradeiro de seu
pai, Clifford, responsável pelo Projeto Lima. Os experimentos com o Projeto
Lima, realizados próximo ao planeta Netuno, tem colocado a vida na Terra e em
colônias humanas – sim, já chegamos em Marte e tem Subway por lá – em risco.
Clifford, até então dado como morto, deve ser parado, seja pelo afeto ou pela
morte.
O que sucede nas duas
horas de filme de Ad Astra é uma sequência de desventuras de Roy tentando
chegar ao seu pai, tendo que passar por confrontos armados na Lua, um
experimento animal que deu errado em uma estação espacial e um conflito
político que envolverá trair seu governo para conseguir o que a humanidade
precisa. Nesse sentido, o filme não para. Nisso, o ritmo pode até parecer devagar
ao espectador conforme acompanhamos os avanços de Roy embalados com a trilha de
Max Richter – que fez algo semelhante na progressão da protagonista de A
Chegada, de Denis Villeneuve – e pela fotografia de Hoyve van Hoytema. No
entanto, não há como ficar estafado porque um evento puxa o outro quase de
imediato – efeito proposital, ouso dizer.
Ocorre que Roy é uma
personagem construída sob uma ansiedade controlada – é um ser lógico que não
consegue se conectar com os demais, seu divórcio logo no começo do filme um
sinal de que precisa resolver esse distanciamento emocional. Enquanto
participante dos eventos, Roy está seguro e o espectador com ele. Entretanto,
quando a notícia de que Clifford está vivo e por trás dos problemas causados à
humanidade, Roy precisa ser ativo e o espectador acompanha essa inquietação,
seja na forma do próximo desafio ou de narrações que expõem que algo está
mudando dentro dele, mais cônscio de si e dos demais conforme vai seguindo as
pistas e superando os obstáculos atrás do pai.
Com isso de ir
progredindo por etapas e desventuras que parecem não adicionar à trama, mas que
na verdade se revelam importantes para o desenvolvimento da personagem, fica
claro que há o elemento da Jornada do Herói: chamado à aventura, encontro com o
Mestre, treinamento, obtenção do item mágico, encontro com o nêmesis, regresso,
etc. Vimos tudo isso no cinema antes com as adaptações de HQs, mas ocorre que o
uso da jornada é pensado no filme de James Gray em uma base próxima do ideal de
Campbell: o herói não surge de um vácuo, mas de uma necessidade social; o herói
não deve superar apenas o vilão, mas também a si; o herói deve voltar diferente
para o lar. É o mesmo princípio do mentor de Campbell, Carl Jung, de que os
atos externos acompanham um desenvolvimento espiritual.
E falando em
desenvolvimento espiritual, a progressão dos eventos em Ad Astra acompanha a
trilha de Marlow até Kurtz no romance de Conrad: um obstáculo se sucede após o
outro conforme se mergulha nas trevas do coração humano. Quando chega à Lua, há
conflitos de terra; no caminho pra Marte, experimentos com animais; em Marte,
politicagem; rumo à Netuno, a necessidade de se impor pela violência. Roy
caminha para Clifford, seu progenitor, como um ser humano caminha para seus
pares, esperando abrigo, mas precisa conciliar essa necessidade com a violência
da experiência humana. É como quando acompanhamos o retorno de Marlow – será
que a experiência o incapacitará como fez com Kurtz?
Com a utilização do
enredo como uma forma de explorar a alma humana, o filme também se aproxima da
obra Solaris, de Andrei Tarkovski. Ambas obras de ficção científica, mas que
tem uma abordagem onírica-espiritual que questiona nosso lugar no mundo. O espelho
que Ad Astra aplica à humanidade é o espaço em si, revelando a capacidade humana
para o bem ou para o mal. Contudo, enquanto a maior parte da humanidade prefere
ficar no raso, tanto Roy quanto Clifford nadam fundo, não podendo voltar a
serem quem eram quando deixaram o lar para trás. Nessa relação, herói e nêmesis
se assemelham tal qual na Jornada do Herói, e o confronto deixa o espectador
tenso.
Brad Pitt interpreta
muito bem Roy, uma personagem com claro detachment, que parece querer
explodir em toda cena em que está, mas precisa manter a máscara da
tranquilidade lógica. Como acompanhamos ele do início ao fim, notamos sutilezas
na expressão corporal e na fala – bem como nas atitudes - que expõem mudanças
gradativas. Merece ser indicado.
A fotografia do filme
está excelente, principalmente em cenas envolvendo o espaço sideral e que
compõe a cenografia – o detalhe da placa anti-suicídio em Marte, por exemplo,
foi uma sacada genial. Como não entendo muito de física, não vou falar que o
filme é preciso, mas os efeitos sonoros e visuais que remetem a obras recentes –
e mais precisas, ouvi dizer – como Interestelar e Gravidade são convincentes.
É um estudo sobre o ser
humano e que ao mesmo entretém, sabendo tirar proveito da lição de algumas das
melhores obras artísticas e ensaísticas dos últimos tempos.
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