Reflexões Rápidas: Bússola, de Mathias Enard

Li isso em algum lugar e guardei pra vida: leitura não tem que ser prazerosa. Sério, não tem. Ela não tem que ser fácil, não tem que ser gostosa enquanto se lê, não tem que fluir. O prazer de algumas coisas se encontra não apenas durante, mas chegando no final. (Cês me entenderam.) E eu acho que isso explica bem Bússola, de Mathias Enard. A trama toda é uma reunião de memórias e fatos históricos e curiosidades sobre os estudos orientalistas - o estudo do oriente pelo olhar ocidental - em meio a história de amor de Franz e Sarah. Esse agrupamento de eventos e fatos, contudo, não segue uma ordem cronológica, mas uma ordem psicológica que põe a exposto a dificuldade de precisar a história dos sentimentos e também das ideias - em vários momentos as discussões sobre como o ocidente influenciou o oriente e vice-versa demonstram que a dicotomia pode ser bem inexistente, ilustrando nossa própria dificuldade ao precisar os eventos das nossas próprias vidas. Páginas e páginas se seguem contando a história de aventureiros e pesquisadores, políticos e artistas que procuram conhecer o Outro oriental e acabam descobrindo algo de si, como que projetando as próprias expectativas - e é difícil não ler isso também no caso do protagonista, que por vezes se ressente do que disse ou não disse, do que fez ou não fez, a tortura da memória individual tal qual a tortura da memória histórica - explica o presente, mas é passado, e no entanto dói tanto... Como Walter Pater em Marius the Epicurean ou Xenofonte em Ciropédia, o leitor está diante de um romance de formação, mas não do protagonista, e sim do mundo como o conhecemos. O choque entre oriente e ocidente que deu vazão ao fundamentalismo islâmico está a descoberto conforme o próprio Franz descobre sua vida enquanto temeroso de revelar seus sentimentos e de seu papel como pesquisador orientalista. O "como chegamos aqui" de Franz se torna uma ferramenta educativa para o leitor, uma identificação da angústia dos nossos tempos que acompanha a angústia de ser apaixonado uma vida inteira. Assim, o livro não é um passeio no parque, mas ele exige ter paciência para confrontar a dor do outro e perceber que ela também compreende a dor do mundo.
PS: Enard coloca, através de Franz, Pessoa e Khayyam em grau de igualdade nos polos ocidental e oriental. Justo.
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O foda de terminar um livro como Bússola, de Mathias Enard, é que agora eu vou passar dias pesquisando a sério as referências dele.
Aí, por acaso, de curioso, peguei um exemplar de uma revista de tradução da USP que comprei há uma década e achei um artigo que falava sobre a tradução em Goethe como representação do ideal da weltliteratur - basicamente a tese da Sarah, personagem de Enard, sobre como as trocas culturais na verdade são construções culturais: ocidente e oriente se alimentam e se formam mutuamente, não são dimensões autônomas como alguns classicistas e conservadores defendem.
Bem disse o Franz perto do fim do romance que Maistre mal podia adivinhar que a viagem ao redor do quarto seria uma possibilidade real 300 anos depois.

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