Reflexões Rápidas: Karen, de Ana Teresa Pereira

1 - Mais um livro que me cai no colo em abril - minto, comprei ano passado - e que questiona papeis de identidade e papeis de gênero usando o gênero literário como ferramenta para tal.
2 - A história envolve uma moça desmemoriada que acredita estar sendo convencida por uma conspiração que se chama Karen e é herdeira de uma fortuna. O romance transita entre a suspeita e o papel introjetado, mantendo o leitor em questionamento perpétuo sobre a verdade.
2a - Interessantemente a verdade é o que menos importa em quaisquer dinâmicas interpessoais se as lemos como meras narrativas. Vistas de fora, a suspensão de descrença se impõe mesmo sobre a realidade quando o inesperado vem à tona.
2b - Hum, parece que Pereira já captava os problemas advindos da era da pós-verdade.
3 - O tom do romance remete ao sulista gótico, sua principal referência o filme de Hitchcock, A Mulher Inesquecível, baseado no romance Rebecca, de Daphne Du Maurier, plagiado de A Sucessora, de Carolina Nabuco. (Sim, a teia de feitura da obra já renderia uma obra à parte.) Mas eu ouso ir além:
3a. Um dos filmes mais aclamados de Alfred Hitchcock é Um Corpo que Cai, onde James Stewart interpreta um detetive obcecado por uma mulher que andava seguindo e que acabou morrendo. Conhecendo uma mulher semelhante, ele começa a fazer com que ela se vista tal como a falecida. Há na personagem de Stewart um misto de assombro e necessidade de projeção satisfatória - e é um típico caso de machismo de molde, mas divago. O ponto que muitos críticos enxergam no filme de Hitchcock é a projeção do ideal feminino pelo homem.
3b. A obra de Hitchcock não é autorreferencial, mas dá abertura para o questionamento. O texto de Pereira é. Tal como A Abadia de Northanger, de Jane Austen, a referência de gênero e o constante embate entre autonomia e papel de gênero literário se apresenta. Os filmes e séries policiais que a Não Nomeada/Karen consome apresentam pistas, mas também são elementos de investigação que podem não levar ao resultado correto. E ainda assim, mesmo que a verdade se apresente, pode não haver satisfação a extrair dela.
3b1. I can't get no satisfaction... (adoro a versão do Devo.)
4. A ideia da cachoeira como o início da narrativa apresenta duas possibilidades: a) um batismo, onde a protagonista, a partir de agora, deve desempenhar um papel que lhe é apresentado tal como um novo cristão; e b) o espelho das águas que revela sua verdadeira identidade. Entretanto, a possibilidade "a" entra em choque com a crise existencial da protagonista pois introjetar um ideal é muitas vezes ir contra seus instintos, enquanto que a possibilidade "b" pode ser ampliada à questão das águas turvas, o espelho de seu ser sendo justo aquele obscurecido de que fala o apóstolo Paulo em I Coríntios 13.
4a. Isso me lembra que há momentos em que a protagonista se questiona se deve abraçar mesmo o que lhe projetam. Bom, "ainda que eu tivesse fé tal que movesse montanhas, sem amor nada seria".
4b. Nada de citar Legião Urbana aqui, ok?
5. Há dois mistérios então que percorrem o livro (percorrer? que clichê!): a) os verdadeiros interesses de quem a chama e a conhece como Karen, e b) o que houve antes da cena da cachoeira? O leitor, tal como Karen, é jogado em cena de vez tal como a vítima de um crime em Law and Order: Traffic Department. O suspense todo vem da sensação de se estar suspenso - esse é o horror de não saber em que narrativa podemos nos encontrar.
6. Que eu saiba até hoje ninguém sabe o que aconteceu com o motorista da limusine em O Sono Eterno, de Raymond Chandler, e é um clássico.
7. Karen tem todo potencial para ser um clássico.
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Lendo Karen, da Ana Teresa Pereira, e outra impressão que tenho é de que há um questionamento constante sobre o que se projeta em personagens femininas. Há uma autonomia prévia que luta com o desejo da introjeção de ideal, gerando uma incerteza constante na protagonista. O uso do estilo gótico, onde a ameaça é o sobrenatural e os esqueletos no armário, cai bem ao texto onde a ameaça também parece ser extranarrativa - pois tratamos de uma narrativa de si - e do temor que há por trás da percepção da própria identidade, de quem somos para além da superficie.

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