Resenha: Tartarugas Até Lá Embaixo, de John Green

Meu reino por um eu.”

Bom, estou meio enferrujado com as resenhas longas, mas valha, esse livro merece uma não pela sua qualidade – até por considerá-lo abaixo do potencial de John Green -, mas porque eu já me tornei habitué da literatura greeniana. Noutros tempos o interesse do público se assomava no meu antigo blog por conta de resenhas da obra solo de Green, querendo saber detalhes que observara ou minhas impressões sobre o romance do autor norte-americano. Em deferência a essa perspectiva, redijo agora uma resenha próxima daqueles textos de outrora.

Meu Deus, como você enrola, cara! Diz aí o que você tem a dizer e pronto!

Sim, meu audience surrogate também está presente. Um retorno à forma! Mas ok, prossigamos.

A tendência na obra de John Green em seus quatro romances solo é a busca do Sentido. Todas as suas personagens procuram encontrar o que seja o Sentido – por exemplo, Margo em Cidades de Papel - ou um novo sentido – a mãe de Hazel em A Culpa é das Estrelas. É sempre essa busca que motiva as decisões e atos das personagens, a busca pela plenitude de vida que não se encontra na superfície das relações sociais – como no caso de Margo ou de Alaska em Quem É Você, Alaska? A busca gera esse sentido, uma proposta encontrada no pensamento logoterápico: “o ser humano não deve perguntar pelo sentido de sua vida, mas antes perceber que é ele quem deve responder essa pergunta” (Viktor Frankl, Man’s Search for Meaning).

A partir desse mote, Green resolve que o ponto da busca por Sentido será acompanhado de uma trama paralela que ajudará a protagonista a responder essa pergunta – é que a reflexão não é tão estimulante quanto a aventura para uma trama infanto-juvenil. No caso de Tartarugas..., Green usará o desaparecimento de um milionário, Russell Pickett, um empreiteiro fraudulento bilionário para tirar sua protagonista, Aza Holmes, do pouco de conforto de zona em que ela se encontra – a protagonista tem TOC, perdeu o pai quando criança e luta pra ter uma vida dita funcional. Compelida pela melhor amiga Daisy, Aza começa a investigar pistas que possam levar ao paradeiro do milionário e pai de seu interesse amoroso, Davis.

A trama assim pensada soa interessante, remetendo ao Lionel Essrog de Brooklyn Sem Pai Nem Mãe, de Jonathan Lethem – um detetive com síndrome de Tourette. Entretanto, desta vez Green não soube como equilibrar esses pontos. Há uma distância qualitativa entre a exploração da vida interna da personagem e o grande enredo da investigação. Comecemos pelo que há de bom, então.

...a vida é uma história que contam sobre nós, não uma história que escolhemos contar.
A gente finge ser o autor, claro. [...] A gente acha que é o pintor, mas é a tela.

Aza é uma personagem que desde o início sabe ser frágil, diferente da tão disseminada leitura que se faz dos adolescentes. No caso dela, essa fragilidade se manifesta na forma de uma germofobia que se eleva a um ponto existencial:

[...] se metade das células no meu corpo não pertence ao meu corpo, isso não coloca em xeque todo o conceito de eu como pronome singular e, mais ainda, a noção do indivíduo como autor do próprio destino?

Esses questionamentos se repetem como uma filosofia cartesiana própria: a dúvida gera a necessidade da resposta, e a busca pela resposta, por sentido, é que determina o senso de consciência da personagem.

Descartes queria descobrir se era possível realmente saber se determinada coisa é real, mas acreditava que duvidar da realidade já era uma prova de que, enquanto a realidade talvez não fosse real, ele era.”

Ou seja, o objeto de observação pode ser falso, mas o observador ter a capacidade de fazer sua distinção o qualifica como um ser autônomo. Só que o não falta a Aza é consciência de si – o problema é que a paranoia que a domina vem justamente da dificuldade de conciliar quem se é, o que constitui seu ser, botando o próprio observador em xeque.

O mais apavorante não é girar sem parar numa espiral crescente, é girar sem parar na espiral que se afunila [...] até se dar conta de que na verdade não está preso na cela. Você é a cela.

A soma do seu nome – Aza é um palíndromo -, mais a referência a um mitema compartilhado em várias crenças – o mundo é suportado por tartarugas – e a questão da longevidade de um tuatara – o réptil é mencionado como objeto de pesquisa do pai de Davis -, ilustram a necessidade da protagonista de controle em uma vivência em que isso se mostra difícil. O que ela tem é a si mesma, redutível sempre a si, mas as fundações em que baseia suas convicções – com as quais luta, é bom dizer – são tão ilógicas quanto a ideia do mitema. Só o que perdura é a busca de saber quem se é e sair vivo dessa quest, como diriam os rpgistas.

Você não deveria fazer isso. Essa merda é álcool puro. Você vai passar mal. Melhor tomar mais um pouco. [...] Chega. Você vai ficar limpa depois disso. Só mais um gole.

A perspectiva da protagonista como definidora da realidade do texto é algo que vem desde Goethe e seu Os sofrimentos do jovem Werther. O olhar constrói o mundo que se torna obstáculo e inimigo do autodenominado herói. A própria Aza é chamada assim por Daisy, embora numa troça:

- Você é a escolhida.

Troça esta que vem depois da própria reflexão de Aza sobre a condição frágil do ser humano capítulos antes:

...eu pensava sobre a ilusão de sermos, cada um de nós, o herói de alguma epopeia pessoal...

Mitólogos enxergam lendas e mitos como expressões da vida humana em algum sentido, daí porque Green também precisa que isso se ligue à reflexão constante de sua protagonista, na forma do mito moderno expresso nas tramas de detetive: a obtenção da Verdade que coloca a realidade em seu devido lugar.

O problema do autor é que a trama de detetive não é explorada a ponto de vincularmos ela às reflexões de Aza. Para falar a verdade, as tentativas da protagonista de ter uma vida funcional, de omitir os problemas, de ter um relacionamento com Davis, e como o distúrbio testa seus relacionamentos amoroso e afetivo são muito mais interessantes que a investigação. O máximo que as pistas fazem é reforçar a empatia entre Aza e seu cunhado, Noah, que sente saudades do pai. Qualquer espelhamento entre eventos do gênero de ficção e a vida de Aza é nulo, até porque a resolução da trama ocorre por acidente de percurso.

Talvez o autor tivesse a intenção de demonstrar que a vida não cabe num gênero de ficção como querem dar a entender a avalanche de filmes (que clichê!) que se baseiam na Jornada do Herói? É uma possibilidade, mas isso não exclui o fato de que a trama de detetive desloca o leitor de uma apreciação maior do caráter psicológico da personagem. Quando eu leio um trecho desses...

Eu sabia que era um ser desprezível. Sabia. Sabia e não havia dúvida. Eu não estava possuída pelo demônio. Eu era o demônio.

...só consigo pensar no quanto qualquer leitor pode se identificar com essa personagem. Pelo olhar limitado pelo distúrbio de Aza, temos acesso a uma realidade interior que gera encanto e sofrimento no leitor, mas que é muito mais interessante que uma caça ao tesouro. A realidade do desaparecimento não colabora em nada para aproveitarmos a realidade de Aza. O sofrimento dela, a dificuldade dela de ter uma vida “normal” é o que nos move.

Ok, Bruce, mas você sabe que o gênero YA pede que a trama seja movida a algo. Mesmo Werther teve eventos...

Teve eventos que ocorriam por conta do próprio Werther. Mesmo as atitudes alheias tinham a ver com o comportamento de Werther. Aqui, o desaparecimento é um detalhe marginal na vida de Aza – assim como não é Lotte que faz o protagonista do clássico alemão sofrer de melancolia – ele chega na cidade já assim -, Aza não precisa de um evento externo que a desafie cognitivamente – ela é um desafio cognitivo. O livro tenta nos dar a entender que deveríamos pensar no desaparecimento também, mas a questão real é a vida de Aza. E não importa se ela não quer falar sobre isso às claras – o leitor reconhece isso. A trama de detetive fica então subutilizada e o desejo por mais da vida interior de Aza fica incompleto. Poderia ser um romance anti-heroico que expressa a dificuldade de viver com um distúrbio psíquico – algo que une eu, Green, Aza, provavelmente o leitor... – num slice of life, mas talvez não fosse vendável.

Em termos de linguagem, Green continua afiado com seus protagonistas adolescentes precoces críveis – não é sarcasmo, é sinceridade. Pessoas insatisfeitas à procura de sentido vão guardar informações e percepções alheias – é normal isso. Tal ansiedade se expressa em referências à Virginia Woolf ou astronomia e estimula nossa composição da vida dessas personagens: o rapaz rico astrônomo que deseja ser um como os outros ao perceber a grandeza do universo, a moça pobre que usa o instrumento da narrativa fanfic para criar pra si um senso de importância, o garoto que vive jogando videogame e querendo ser castigado porque não consegue expressar seu sofrimento, etc. É por conta desses detalhes que percebemos que a popularidade de Green vem de quão perceptivo ele é – posso até questionar a qualidade da narrativa, mas suas personagens são muito interessantes.

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PS: Um dos meus trechos favoritos e que diz tanto sobre a dificuldade de ser Aza (“é muito raro encontrar quem veja o mesmo mundo que o seu”), está no seguinte trecho:

O passado é uma armadilha que já nos capturou. Um pesadelo, disse Stephen Dedalus, do qual estou tentando acordar.

Esse é um trecho escrito por Davis em seu blog expressando sua percepção sobre si. Davis olha para as estrelas imaginando se dissolver da identidade social que lhe é imposta: rico, filho de um bilionário fraudulento, etc. O problema de Aza é o inverso: ela está dissolvida e não tem referência de si. Ambos desejam sair de quem são ou de como estão, mas o trecho revela um problema conceitual: não é o Passado que é um pesadelo no texto de Joyce, Ulisses/Ulysses, mas a História em si, o pensamento de Vico de que a história é cíclica, daí inescapável. Davis é definido pela história anterior a ele – filho de um homem rico -, enquanto que Aza é definida por seu presente – uma busca constante pelo eu. A cisão para Davis é possível, mostrando que o trecho diz mais sobre Aza que sobre ele. Um trecho curto, mas que explica muito sobre o porquê de alguns eventos futuros na vida dessas personagens.

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Autor: 
John Green (1977-) nasceu em Indianapolis, Estados Unidos. Além de escritor, também criou o vlog VlogBrothers com seu irmão, Hank, sendo que os fãs são conhecidos como Nerdfighters. Escreveu também "Cidades de Papel", “A Culpa é das Estrelas”, “Quem é Você, Alasca?” e “O Teorema Katherine”.

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