Reflexões Rápidas: A Vegetariana, de Han Kang
1 - Talvez isso surpreenda alguns mas animais e plantas tiveram um ancestral em comum até 1 bilhão e meio de anos atrás - ou seja, ontem. Ainda hoje compartilhamos com as plantas o fato de ambos termos células eucariontes.
2 - Na mitologia grega, Gaia é representada como uma deusa que dá vida aos seres vivos. Na psicologia analítica, usa-se o termo "ctônico" para definir o impulso inconsciente; esse mesmo termo é empregado para definir as divindades e criaturas do subterrâneo na mitologia grega.
3 - O livro é dividido em 3 partes que vão explorando os efeitos da transformação gradual da protagonista, Yeonghye, sobre sua família, mais precisamente seu marido, seu cunhado e sua irmã. Há uma progressão da violação do tabu carnista com a decisão de aderir ao vegetarianismo à aceitação da existência como um vegetal. Em todos os casos, o que ocorre é um problema de "ser" em um ambiente que define e regula a natureza dos demais.
4 - Havia dito antes que sentia ser um terror biopolítico e mantenho isso. Temos o fato de uma mulher coreana recusando-se a aceitar as orientações alheias - principalmente masculinas - sobre quem ela é. O simples desejo de "ser" é um ato de violência contra a normatividade - e é aí que a obra ganha o tom kafkiano do terror da existência social. A ojeriza ao Ungeziefer (a tradicional Uma Barata Chamada Kafka) é uma demanda - não por acaso temos o distanciamento familiar conforme a transformação (verwandelt) prossegue. O terror se revela por diferentes olhares: o da transformada, Yeonghye, e dos observadores, a família, mas principalmente Inhye, a irmã.
4a - Aqui eu gostaria de deixar claro que não sou muito fã de alegorias, tal qual o piloto Renan. Tive uma péssima experiência com Nárnia relacionada a isso.
4b - Mas é, a alegoria é um fator presente. O efeito de "ser" expõe o mecanismo patriarcal que absorve e violenta a existência feminina - em um determinado momento, vemos que mesmo a masculina. Ao recusar ser espelho do marido medíocre ou da irmã que precisa se reafirmar socialmente através do trabalho, Yeonghye dá vulto a uma existência interior que desconhecia estar suprimida. Esse efeito catalisador alcançará o cunhado, que parece identificar nela um caso de kindred spirit (semelhança de espírito) - novamente não de todo pois ele ainda é um ser masculino dentro do sistema patriarcal -, e a irmã, que percebe como uma existência trocada ou uma sucessão de eventos pode transformar uma pessoa - e aqui retomamos o ponto da planta: um simples rearranjo genético poderia revelar nossa natureza vegetal.
(Intermezzo 1: provavelmente revelaria que muita gente é um coco oco.)
4c - Dito isso sobre a alegoria, é que ainda me incomoda pensar em textos à la Kafka e envolvendo biopolítica como simples representações fantásticas de eventos mundanos. Há força no texto de Kang tanto em uma leitura vinculada ao real como tratando de pontos existenciais - o deslocamento de Samsa ainda nos percorre as veias mais de um século e nem por isso nos identificamos com os problemas que Kafka experimentou na condição de judeu pré-ascensão nazifascista.
5 - É no confronto com Yeonghye que se revelam as personagens: o marido se revela acomodado pela esposa "não ser especial", o cunhado se revela deslocado até sentir o desejo de ver sua mancha mongólica e a irmã tenta de tudo pra que Yeonghye reaja pois há o temor de sofrer o mesmo. No primeiro caso, o abandono de casa é uma "necessidade" social. No segundo caso, ter relações sexuais com a cunhada parece ser uma "necessidade" erótica pois ele projeta nela algo análogo à anima (adorei a aliteração!). E no terceiro, dito e feito: ao se dar conta de que a convenção é apenas uma representação, Inhye desperta para uma dúvida existencial.
6 - A transição do animal pro vegetal, assim, é paulatina pelo distanciamento progressivo do reino animalia, passando pelo consumo de outros plantae até se tornar em uma planta por conta. O desejo de não ser um animal social - nem desejo, mas impulso - transita do consumo do semelhante, outras plantas, para a realização do ser vegetal. É uma progressão oposta a do reino animal onde a distinção de espécie gera o famoso especismo e com isso a hierarquia do consumo de seres do mesmo reino se estabelece. O humano foca no domínio - e nesse domínio o macho é quem tem voz - enquanto que o vegetal foca na contemplação da existência, apenas vivendo para suas raízes.
7 - Like a leaf clings to a tree...
8 - Com isso, o irresoluto término da obra adianta que o terror permanece justamente pela compreensão do que é a existência. Ao perceber-se tão frágil quanto Yeonghye, Inhye saca esse "acidente" da existência. O término do romance, com o olhar sombrio, inquisidor, inquieto, obstinado, é uma cobrança de Gaia por respostas que ela não tem como oferecer. Saber-se no limiar da existência acidental enquanto se está ao mesmo tempo incorporando um determinado tipo de animal social beira o terror cósmico lovecraftiano a nível celular.
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