Resenha: A cidade sem judeus (Die Stadt ohne Juden) (1924)

Por Providência ou Acaso, tive a oportunidade de assistir a cópia restaurada do filme A cidade sem judeus, de Hans Karl Breslauer, baseada em romance de Hugo Bettauer, autor que denunciou o crescimento do antissemitismo na Áustria e que foi assassinado posteriormente por um nazista. Exibido no 23º Festival de Cinema Judaico em São Paulo, o filme mudo de 1924 aborda as formas como o fascismo toma conta da sociedade aos poucos e espalha cizânia para esconder a própria incapacidade dos governantes, que fazem uso de um bode expiatório para "promover o moral" da população. 
No fictício país Utopia, a crise econômica se agrava cada vez mais, com a população ficando insatisfeita e o governo não sabendo o que fazer. É aí que o governo, influenciado por interesses externos, toma a atitude de expulsar todos os judeus do país sob pretexto de que estão "roubando os empregos" dos cidadãos locais. Embora o governo reconheça sua contribuição para a sociedade de Utopia, acreditam que sua expulsão seja de interesse geral. Com isso, milhares deles viajam para outros países ou rumam para Sião, vivendo em harmonia com os árabes locais - e este é o primeiro filme. Digo isso porque há dois filmes em A cidade...: um abarca o drama de judeus expatriados tendo que abandonar o país em que nasceram, a única diferença entre eles e a população sendo a religião - vide que os relacionamentos inter-religiosos são mostrados na tela e adicionam maior drama quando temos namorados tendo que se despedir ou famílias se dividindo; e o outro filme é um thriller. 
Esse thriller envolve uma personagem marginal no começo do filme, Leo Strakosch (Johannes Riemann), que é apaixonado pela filha de um dos deputados que votou a favor da lei de expulsão. Leo volta para Utopia com documentos falsos e vai analisando a situação social e econômica do país - uma das melhores cenas do filme e que demonstra o problema em que Utopia se encontra é a do gerente do hotel perguntando se Leo deseja um quarto ou o hotel inteiro, fazendo cálculos à la meme da Nazaré Tedesco calculando, mostrando que a moeda local continua desvalorizada. Vendo na crise uma oportunidade, Leo resolve espalhar cartazes esfregando na cara da população o impacto negativo da expulsão. 
Agora, tenhamos em mente que esse filme é de 1924 e Hitler só chegará a chanceler em 1933, mas o olhar posterior gera inquietação no espectador contemporâneo. Quando vemos trens indo em direção a lugar nenhum, marchas na neve, judeus se despedindo de seus lares e carregando pedras para lembrarem de seu lar, a lei que determina o grau de parentesco exigido para se reter a nacionalidade utópica, o fato de Leo conseguir passar por ariano e ainda divulgar tudo igual Sophie Scholl, é impossível não pensar nisso tudo como uma profecia. Contudo, o que enxergamos mundo afora demonstra que o filme capta as consequências do discurso Nós contra Eles apregoado com força em 1924 e que ainda hoje ressoa. 
Entretanto, se o filme expõe a tensão social existente, por outro lado ele também tenta demonstrar que é possível resolver isso através de um final feliz que pode dar a entender que a presença de judeus é um "mal necessário" - eles são admitidos apenas porque há pressão internacional e a sociedade local percebe que "pior sem eles" - saí do filme pensando em Hannah Arendt e a discussão sobre como os judeus são desumanizados historicamente e as consequências dessa desumanização com o regime nazista. Eles não são recebidos de volta porque são reconhecidos como iguais, mas por serem uma "peça importante da engrenagem".
Nos detalhes técnicos, preciso dizer que achei a trilha sonora várias vezes dissonante do filme. Sabendo que foi composta a posteriori pra restauração, ficou muito estranho o predomínio da percussão na maior parte do filme e estamos falando de uma das poucas obras sobreviventes do expressionismo austríaco. Se por um lado me incomodou o mise en scène que parecia a união de imagem de arquivo com o filme propriamente dito, por outro se destacam as cenas de efeitos especiais e o trabalho de câmera, que orienta bem o espectador. Aliás, disse há pouco que o filme é expressionista, mas isso está mais claro pelo humor do filme, com a tensão contra e dentro da comunidade judaica, que pelo seu apelo visual, com apenas três cenas apresentando algo do tipo: 1) a cena do gerente fazendo cálculos no ar, mostrando que ele está "assombrado" pela crise financeira; 2) o pesadelo do deputado antissemita com anjos usando a Estrela de Davi; e 3) o mesmo deputado internado num manicômio e enxergando a Estrela de Davi em todos os lados - uma ótima expressão da paranoia conspiracionista.
O arco que deve encantar mais o público médio é o de Leo e sua namorada, Lotte. Procurando viver um amor (temporariamente) impossível, o público se emociona com essa dificuldade e torce pelo sucesso de Leo, que para mim se tornou um dos heróis mais marcantes do cinema graças à sua sagacidade - até me pergunto se ele não foi o modelo do Agente 326 em Os Espiões, de Fritz Lang.
A cidade sem judeus é uma importante obra do cinema pois mostra que a arte também tem posicionamento crítico. Se por um lado questiono a apresentação do conteúdo, por outro reconheço o esforço da produção em apontar os perigos do discurso político de então. A cópia mais conservada possível do filme foi encontrada por acaso em 2015 em Paris, e o povo austríaco se orgulha tanto dessa obra - mostra que havia resistência ao discurso nazista no país de Zweig - que sua restauração foi bancada por crowd-funding. Como sempre digo, obras artísticas são um testemunho de seu tempo e tem mérito histórico.

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