Reflexões Rápidas: O xale, de Cynthia Ozick

1) O livro contém dois contos de Ozick, O xale e Rosa, que compartilham de uma mesma protagonista, Rosa Lublin, sobrevivente do Holocausto. O objeto de interesse do conto Rosa é um xale que teria pertencido à falecida filha da protagonista, Magda, morta em um campo de concentração. O xale, que é o primeiro conto do livro, explica como Rosa escondeu a filha - provavelmente concebida com um estupro, visto que Stella, sobrinha de Rosa, vive a falar mal da criança - usando um xale rosa até que os soldados da SS a encontram e arremessam contra uma cerca elétrica - é uma cena pesada, principalmente porque Magda estava aprendendo a falar "mamãe" antes de morrer. Há uma ironia triste e pesada na cena porque, sendo a criança metade ariana, então o soldado mata um dos seus. Essa ironia será retomada posteriormente em Rosa;
2) minha formação literária começou com os livros de Morris West e Frederick Forsyth, depois que fui pegando Machado de Assis, Erico Veríssimo, entre outros. Mas eu já era meio literato no colegial e ia atrás de mais dados sobre literatura - queria estudar mais o tema. Um dia, vendo Gilmore Girls (Tal Mãe, Tal Filha no SBT), vejo a Lorelai pegando emprestado No caminho de Swann, primeira parte da série Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, com um dos professores da filha. (Aliás, adorava aquele casal.) E eu fui atrás de mais informações sobre o livro e geralmente via piadas sobre o fato de levar mais de 50 páginas pro protagonista levantar da cama - como ainda não li o livro, pelo que eu tinha entendido ele acordava, lembrava de algo, e fica ruminando isso. Quando você tem 15, 16 anos, um texto assim parece algo sem graça. Aí na faculdade eu fui descobrir que ele mordia um biscoito, uma madeleine, e começava a lembrar das coisas. Ainda assim achei isso sem graça. Bom, precisou eu chegar aos 30 anos e passar por alguns eventos de despersonalização pra eu perceber que a relação entre um objeto e a memória é algo extremamente importante. Acho que, se tivesse lido O xale quando adolescente, não teria aproveitado tão bem o texto. (BTW, já faz alguns anos que não tenho despersonalização, faço terapia, e não, ainda não li Proust. Eu sei. Shame (toca o sino) shame (toca o sino) shame (toca o sino);
3) pertinente à memória, fato é que muito da cultura judaica se expressa em termos memorialísticos, indo do Seder que celebra a fuga do Egito ao Purim, quando os judeus conseguiram escapar do complô de Hamã durante o império persa, passando pelos salmos que mencionam babilônios pedindo aos judeus cativos que cantem músicas de sua terra à maldição invocada contra quem renegar a terra natal de Jerusalém. Sendo assim, a união dos contos O xale e Rosa firma a relação entre o objeto - a história - e a memória. O xale de Magda preserva a história de uma criança de menos de um ano morta e cujo corpo deve ter se perdido com o tempo, sem nem mesmo um kadish rezado - até por Rosa ser uma judia deslocada da fé, mas falo mais sobre isso adiante. Basta saber que um xale que cobriu uma recém-nascida existe no mundo real e que se soma às existências negadas mas comprovadas por tantos fios de cabelo, dentaduras, óculos, sapatos e demais objetos encontrados nos campos;
4) encontramos Rosa Lublin em Rosa passados uns 30 anos. Ela vive em Miami, sozinha, tendo sobrevivido junto com a sobrinha Stella, que vive em Nova York e não conseguiu embarcar para a Palestina porque Rosa impediu - é um detalhe que vou explicar mais adiante. A vida para Rosa é difícil: ela não consegue superar a perda da filha e depende da existência do xale. Volta e meia escreve cartas em polonês para Magda, imagina as profissões que a filha deve ter tido, com quem deve ter se casado, onde mora... "Se tudo que a pessoa tem é o pensamento, é lá que ela vive." A relação com Stella não é das melhores e explica a cisão de Rosa com o judaísmo e a comunidade judaica: o desejo de Stella é se assimilar, tal qual os judeus americanos, que foram pros EUA antes do Holocausto, fugindo dos pogroms no leste europeu, mas Stella não consegue fingir que não é uma refugiada, uma sobrevivente, enquanto que Rosa se orgulha da sua origem, mas também se incomoda em ser tratada como uma estranha. Rosa foi criada aristocrata, a fé judaica não sendo algo incentivado em casa, apenas um traço leve de sua identidade - ela se reconhece mais polonesa que judia. Mesmo tendo passado pelo gueto de Varsóvia, ela despreza os judeus de classe baixa falantes de iídiche - afinal, diferente dela, eles não se incorporaram à sociedade polonesa, logo, estão deslocados. A ela não escapa essa ironia ao se ver vivendo nos EUA e mal sabendo falar inglês;
5) "Antes é um sonho. Depois é uma piada. Só o durante fica." Com essas palavras, Rosa explica a Persky, um judeu assimilado falante de iídiche, o que ocorre com ela. Em qualquer outro conto, texto, filme, a história por trás do xale seria encaixada como um flashback, à la Proust e as madeleines. Mas Ozick enxerga longe. Em um de seus contos, o russo Anton Tchekhov conta a história de um cocheiro, Iona Potapov, que vai relatando seu luto em palavras para um grupo de passageiros que mal presta atenção em seu sofrimento. No caso de Rosa, o sofrimento fica expresso em tudo quanto ela observa: o fato de ser uma refugiada, daí indesejada; as cercas ao redor de uma praia particular - aliás, ironicamente gerenciada por um judeu; ser chamada de sobrevivente e assim virar um número; o vestido listrado dado por Stella... Não há uma vida pós-campo - ela continua, e isso não é necessariamente bom, é o que parece expresso por Rosa. Como no caso da calcinha extraviada depois, ela tem medo de que o objeto que está ligado à história dela seja manipulado como manipularam o tecido da vida dela - "os ladrões roubaram a minha vida";
5a) com isso o conto demonstra a natureza do trauma: diferente dos recursos narrativos que pulam da origem do trauma às crises, o trauma se mostra entremeado na realidade de Rosa. Não há um deslocamento com catarse fácil que a faça superar isso à la Gente como a Gente ou Quando Fala o Coração - pra onde quer que ela olhe, o mais comum dos objetos faz a ligação com a memória do passado. A vida não é superação para Rosa - é continuidade, e o trauma vem junto (aliás, isso é bem mais preciso em termos psicológicos que uma porrada de representações artísticas);
6) o sofrimento, assim, não vem do trauma do passado, mas porque o trauma persiste no presente; e
7) Ozick encerra a dificuldade de expor esse sofrimento para duas gerações de judeus em específico: a de Perzik, emigrado antes, e a dos rapazes homossexuais e do gerente do hotel, assimilados que, mesmo compartilhando a identidade judaica, não têm ideia da experiência de Rosa. Diferente do conto final de Adeus, Columbus, Eli, o fanático, onde Roth promove em Eli uma epifania ao captar o sofrimento de um judeu ortodoxo sobrevivente ao vestir suas roupas, Ozick oferece para Rosa se reconhecer como o outro, algo a que resistia por conta de sua formação. Mas ao fazê-lo, ela pode preservar o caráter único de sua história, como mulher e como judia.

Comentários