Reflexões Rápidas: Bontzie, o Silencioso, de IL Peretz

1) Meu conhecimento da literatura iídiche é muito pequeno, mas compreendo melhor de onde a ironia e o fantástico vieram pra povoar os textos de Kafka e Schulz.
2) Difícil não ler contos assim e não pensar em como eles lembram os de Chekhov. Nunca estudei a fundo a relação, influência, mas parece haver indícios.
3) O conto se situa nesse espaço social europeu onde o judeu é o ser humano a quem é negada esse status. Enquanto útil, ainda vai, mas na primeira oportunidade... E isso se concentra na vida de um idoso de nome Bontzie, cuja vida foi uma série de infortúnios, dentro e fora da comunidade. Sem amigos, sem posses, sem voz. Não há a quem possa recorrer. E um dia, tragicamente morre ao quebrar a coluna levantando uma carga pesada. Aceito no Céu, recebido como um igual pelo próprio Abraão (!), sente-se deslocado porque tudo que vê e lhe oferecem é descomunal.
4) Um elemento que eu adoro em alguns desses contos - dos que li até agora - é a ironia: a resposta de Bontzie ao que ele deseja envergonha o próprio Céu, o próprio Javé.
4a) Nessa hora até lembrei de Stephen Fry falando que, se Deus existisse, ia falar um monte pra Ele.
4b) Apenas o Acusador cai na risada com a resposta porque há empatia - Bontzie deixa claro, sem querer, o absurdo a que foi submetido por "instâncias superiores". De que adiantava ter sido mais humilde que Jó ou ter uma voz que poderia derrubar os muros de Jericó se ele não conseguiria fazer uso disso?
4c) Nessa hora eu lembro do pároco falando ao padre em Luz de Inverno que o sofrimento de Cristo não se compara ao sofrimento de muitos no cotidiano. De certo modo, todos somos bodes e cordeiros em algum grau.
4d) Mas por que digo que há ironia? O desejo de um ser humano destroçado como Bontzie é simples, e o que o Céu lhe tem a oferecer é algo suntuoso. Mesmo que o Juiz diga que aquela é a verdadeira realidade, Bontzie só conhece a que viveu. (Ei, isso me lembrou do meu poema!) Ou seja, o conformismo de Bontzie se mantém mesmo onde poderia se assentar ao lado dos Patriarcas.
5) Algo recorrente na literatura judaica é o ponto em que o protagonista judeu percebe que só pode contar consigo - vide o Sueco de Pastoral Americana, que descobre que não importa quão integrado esteja à sociedade secular, ele ainda está só, ou Associação Judaica de Polícia, onde o protagonista vê que a Verdade é uma mercadoria negociada e abatida de tempos em tempos tanto pelos seus quanto pelos seus inimigos.
5a) Aliás, já que mencionei Roth, a cena de Bontzie envergonhando o Céu me lembra dois contos do autor: A Conversão dos Judeus e Eli, o Fanático, onde, respectivamente, uma criança cansada de apanhar e um judeu integrado à sociedade secular constrangem os seus ao expor a situação limítrofe em que se encontram - o primeiro fazendo todos virarem cristãos na base de uma ameaça, apagando-lhes a identidade, e o segundo exibindo o resultado do totalitarismo no contato secular, o que lhes erradicaria. Então, no fim das contas, quem é Javé para querer julgar que Bontzie mereça algo?, a pergunta que o Acusador não faz.
6) É um conto gostoso de ler, mas que tem a maior parte de sua força contida na parte do Céu, no fantástico, onde se realiza o julgamento do protagonista. Quando captamos que ninguém no Céu tem uma medida do sofrimento do réu, nossa percepção sobre o fato de haver um julgamento muda - e imagino que deva pesar mais pra quem realmente acredita que é assim que acontece(rá). Tudo acaba soando vazio na voz dos anjos, mesmo de Abraão e Javé, e é quando Bontzie dá a resposta final que sentimos o baque - o Acusador ri porque toda aquela situação não é um auto, mas uma farsa.

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