Reflexões Rápidas: Eu Sou Favela (vários)

O primeiro conto, do Carrascoza, infelizmente denuncia a diferença de mundos entre autor e personagem ao deixar escapar léxico rebuscado aqui e lá. Já o segundo, de Ciríaco, está mais sustentado e é um exercício de subversão e crítica à tragicidade constante em histórias envolvendo moradores das favelas. 
Enquanto o primeiro conto trata da destruição da inocência, o segundo contrapõe sua permanência - o mal está nos olhos de quem lê. Sigamos.

O terceiro e o quarto contos são muito bons. Sacolinha me fez lembrar um conto de Philip Roth, A conversão dos judeus, mas com uma diferença social clara: enquanto o moleque da yeshiva consegue submeter todo mundo à conversão, o da escola não tem voz, não consegue se expressar. É um silenciamento que vai do diretor que "faz a caveira" até o pai agressor. É um final crível - quem lembra da adolescência sabe o quanto é! Já o conto de Buzo parece antítese imagética - uns alçam voos, outros se afundam -, mas compartilha da negação estrutural à voz do jovem negro e da favela. Para demonstrar como isso se mantém imutável, Buzo faz uso de linguagem e imagens bíblicas do Novo Testamento - aqui não há espaço para Eclesiastes 3, é fatalista assim.

Quinto conto, agora de Freire, estilo minimalista sempre e que serve - e funcionou - para expressar que a dicotomia é questão de percepção. Há uma agilidade algo noir no texto mas que não se distancia do afetivo - o histórico do nascimento do "monstro" (qual?) expõe sua humanidade, mesmo que a negue ou lhe seja negada.

Sobre Coração de Mãe, do Ferréz: em termos narrativos, é algo pungente. A escalada emocional da protagonista até que ela abraça a decisão é crível e dolorida. Ele sabe inserir uma persona maternal que aglutina as experiências dos filhos e pesa o destino deles antes de fazer o que pretende. Contudo, duas coisas me incomodaram: 1) a fala da protagonista por vezes soa paródica, com clichês de esquerda. Isso tira o leitor da realidade da personagem em vários momentos, como um discurso objetivista de Ayn Rand no meio da trama; e 2) achar que é preciso colocar a decisão final num twist ending. Estamos acompanhando um momento crítico ali e já compramos a percepção dela, o que pesa pra gente é se ela segue em frente ou não - e isso podia ter sido esclarecido desde o início sem perda do apelo emocional.
PS: sem contar que inserir o twist ending quando consideramos o posicionamento da protagonista - isso é algo que salta, infelizmente - torna mais difícil a empatia para outros públicos.

Sobre Maco Desce o Morro, de Victoria Saramago: acho que a força desse conto está mais na narrativa que na escrita. Cá e lá escapam construções mais formais, mas o tom do texto - um aviãozinho no meio de uma entrega fissurado na ex-mina - funciona muito bem. A parede de fluxo de consciência como um monólogo aproxima o texto da oralidade e o fato de não entendermos o que se passa com Luana espelha o humano - quem tem tempo de prestar atenção ou de se inteirar da vida de todos de quem se gosta? O trecho final, onde a entrega é mais importante que a vida da ex, por quem ele chega a atrasar a compra, ressignifica uma demonstração afetiva. Foi um final que me lembrou Arábia, de James Joyce - a diferença é que o protagonista não tem o tempo da reflexão do irlandês pois é preciso sobreviver.

Sobre Balaio, de Marçal Aquino: se tem matador, é do Aquino rs. O conto sobre dois assassinos de aluguel que resolvem peitar criminosos de uma favela com pouco revela muito. A pax romana da polícia e dos moradores expõe o equilíbrio tênue das relações de poder. A malandragem do protagonista expõe o aprendizado da vida que se sobressai à prepotência dos estranhos. Ao mesmo tempo, temos tênue também as relações de confiança: sabendo que nada pode fazer por Joãozinho, lava as mãos, mas não titubeia em confiar no dono do bar e nos colegas de carteado.
PS: por outro lado, o enfrentamento final pode ser lido como uma forma de dar mais tempo a Joãozinho. Aquino diz pouco e por vezes gera incerteza na gente, o que é uma de suas qualidades.

Sobre Nervos, de Ronaldo Bressane: no último conto de Eu Sou Favela, há uma desumanização completa exposta nos versos de Lupicínio Rodrigues, repetidos ad nauseam no texto, com o corpo exposto da mulher torturada pela fome e pela incapacidade de fala do homem que havia lhe prometido o mundo. A vida à margem, como um estado sempre presente, o torna um não-ser que deve estar disposto a ir cada vez mais baixo para sobreviver. Toca muito a cena em que ele observa a barata em busca de alimento, sem que pense em matá-la, até parece invejá-la. Destaco a fala pausada, telegráfica, que aparece em alguns momentos - isso espelha a angústia do protagonista, faminto e derrotado

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