Resenha tripla: Tóquio violenta (Tokyo nagare-mono), 1966 / Elegia da briga (Kenka ereji), 1966 / A juventude da besta (Yaju no seishun), 1963


De 21 de janeiro a 9 de fevereiro de 2019, o Instituto Moreira Salles de São Paulo exibe a Retrospectiva Seijun Suzuki, com apoio da Japan Foundation. Seijun Suzuki foi um dos diretores mais iconoclastas do cinema japonês e seu impacto pode ser observado no cinema de diretores como Jim Jarmusch e Takeshi Kitano.


Tóquio violenta

Faz quase uma década que vi pela primeira vez um filme do controverso diretor japonês Takashi Miike. Seus filmes são sempre mencionados como exemplos do potencial violento que o cinema japonês tem a oferecer, de uma visceralidade desmedida. Na ocasião, o primeiro filme que assisti foi Izo, uma sequência não oficial do clássico O castigo (Hitokiri), de Hideo Gosha. O filme de Gosha falava de um ronin, Izo Okada, que volta a servir um mestre que, futuramente, o trairá. Qualquer ideia de honra nessa relação é apenas autoilusão.

Para além da questão da honra, sobre a qual falarei depois e que se relaciona com Tóquio violenta, no filme de Miike fui apresentado a algo que desconhecia: a pausa musical num filme chambara. Conforme o revivido Izo vai avançando no seu projeto de matar todos que o traíram – a sociedade inteira, basicamente, porque permitiu que um indivíduo inocente fosse sacrificado -, o cantor folk japonês Kazuki Tomokawa volta e meia canta sobre o sofrimento da vida, algo que levará Izo a querer confrontar até mesmo as divindades que projetaram seu sofrimento. Tóquio violenta parece ser um antecessor dessa ideia de Miike.

Quando Kurata decide abandonar os caminhos da yakuza, mantém consigo alguns homens fieis, entre eles Tetsu, agora seu braço-direito. No começo do filme, filmado em preto e branco em estilização noir, vemos Tetsu apanhar de outros yakuza que querem testar quão fiel ele vai se manter a Kurata e não abandonar seus princípios de não recorrer à violência. Em preto e branco temos então um embate pela alma de Tetsu. O rival de Kurata, Otsuka, fica surpreso com a dedicação de Tetsu e percebe que qualquer próxima investida precisa ser melhor pensada nesse novo mundo – e então o filme ganha cor, como a expor que o certo e o errado não são tão claros assim. Mudam as cores do noir, mas não os problemas.

A explosão de cores será acompanhada de uma explosão de violência, num crescendo conforme Tetsu procura se manter fiel a Kurata e evitar ser morto por Otsuka. E é justamente ao acompanhar essas aventuras de Tetsu, “o vagabundo de Tóquio”, que Suzuki realiza uma das maiores reflexões sobre o cinema. Se num primeiro momento a trama soa e assemelha a Chinatown, em outro começamos a ver as brechas na estilização do filme: cenas de morte com efeitos dramáticos exagerados – a secretária que leva um tiro, levanta, cambaleia, arranca a roupa, tudo isso pra dar tempo do amado aparecer e jurar vingança -, combates em ambientes 2D – as pilastras em que os envolvidos se escondem num ambiente de decoração minimalista -, cenografia nada prática em termos de combate – a cena do duelo na linha do trem parece bacana, mas é risível na vida real -, a briga generalizada no salloon – o cenário parece retirado de um episódio da série Chaves, as sequências de combate lembram tanto clássicos do faroeste como final de filmes cômicos do Mel Brooks -, a entrada em cena de Tetsu sempre assoviando – e ele não está nem aí se sabem que ele está por perto, afinal, ele é o herói do filme! -, e por aí vai. Ao fazer isso de forma tão clara, Suzuki expõe que tudo quanto aceitamos do cinema é convenção: nada ali é real – incluindo as ideias de honra e lealdade, visto que Tetsu será traído tal como Izo um dia foi. Em um filme só, Suzuki propôs uma desconstrução e um ataque a gêneros consagrados como o faroeste e o noir que o Ocidente estava em vias de realizar pelas mãos de Robert Altman e Sergio Leonequatro anos antes de Tóquio violenta, o filme Harakiri, de Masaki Kobayashi questionava a ideia da honra de samurai, abrindo espaço para Hideo Gosha. (Miike refilmou Harakiri posteriormente e lançou como Ichimei.)

Mas como um filme que é desconstrução mantém o espectador tão preso à tela? Não é apenas pela história, mas como a história é contada e Tetsu é um protagonista muito interessante. Tudo quanto acompanhamos na tela é ditado por ele, o universo em cena é dele. Izo quer destruir o mundo que o condenou, enquanto Tetsu vai construindo aquele em que está. É ele quem dá o tom da cena – literalmente: no duelo sobre os trilhos, é ele quem faz o vilão ficar parado ali; quando precisa de ajuda, encontra por acaso um mentor que trata seus ferimentos e com quem pode debater sobre lealdade; e se quem tem a lira é quem tem o poder sobre a história, Tetsu vive assoviando sua música-tema. É um protagonista que está no controle do seu destino, e quem cruza seu caminho para demovê-lo acaba sendo destruído física ou emocionalmente.

Uma cena em especial me chamou a atenção: quando Ken, o ex-yakuza transformado em ronin e que um dia serviu a Otsuka, aparece para ajudar Tetsu, toda vez que ambos conversam ele saca uma carta do baralho e começa a fazer uma leitura sobre o que representa para o futuro do protagonista – a carta é sempre um ás de espadas. Em alguns momentos entendemos que Otsuka possa ter algo que surpreenda Tetsu, e em outros que o próprio Tetsu já tem algo em mente. Mas se formos pensar na desconstrução, Ken é como o crítico de cinema que tenta entender a fórmula enquanto Tetsu vai construindo a narrativa, mas Suzuki sempre tem uma surpresa, o que torna o filme até desconcertante quando se fia por uma via convencional.

Fosse um filme de gênero pura e simples, não teríamos problemas em aceitar até a necessidade de Tetsu ter que fazer um resgate de última hora quando sua ex, Chiharu, é coagida por Otsuka a cantar. A representação toda da sequência é basicamente Suzuki consciente da expectativa do público e fazendo uma concessão, mas dentro dos seus próprios termos, em uma sequência colorida em ambiente minimalista e com uma redenção que soa deslocada, mas que está dentro do gênero. Ou seja, até quando o crítico/Ken acha que já sacou a narrativa, vai lá Suzuki/Tetsu e transforma a obra mais uma vez, em um tango entre subversão e convenção.
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Elegia da briga

Se em Tóquio violenta temos um protagonista que dita a progressão da narrativa, em Elegia da briga temos um cujo fim já está previsto desde o início. As primeiras tomadas de Elegia da brigada envolvem paisagens japonesas diversas com uma trilha de marcha ao fundo. Logo depois, somos apresentados ao protagonista, Nambu (interpretado de maneira convincente por Hideki Takahashi), que vive em Okayama e frequenta uma escola militar. Ele divide a casa com uma mãe e uma filha católicas, volta e meia frequentando a igreja para ficar perto da última, Michiko. Nambu é um adolescente que não tem traquejo social, se atrapalhando vez por outra – vide a cena em que ele vai entregar as flores pra Michiko na igreja sem perceber que está sem camisa, ou quando ele se masturba no piano de Michiko apenas para desmaiar ao ver um crucifixo -, e que vive sendo zombado pelos colegas… até dizer chega.

O tom cômico do filme permanece com o espectador mesmo quando Nambu vai treinando para ficar mais forte, mais hábil para o combate, mais confiante para entrar em uma briga. O treinamento sob a supervisão de seu colega de igreja, apelidado de Tartaruga, o encaminha para ir além, que é o que faz quando resolve se juntar a uma gangue ainda mais violenta na escola. O problema é que Nambu comete erros bobos, seja com a gangue ou com a administração escolar. Seu preparo não acompanha a confiança que desenvolve, revelando essa arrogância às claras aos demais, mas Nambu insiste.

Quando o filme passa do cômico ao melodramático, é porque Suzuki nota que é preciso que o espectador compreenda para onde Nambu se encaminha. A violência que Nambu carrega e leva por onde vai é sinal não só sinal de um comportamento juvenil desmedido, mas sinal do amadurecimento do homem ideal japonês. Quando a última tomada que temos do filme é Nambu dentro de um trem encaminhando-se para uma tentativa de golpe de estado, prenunciada pela presença do líder revolucionário em um dos destinos que Nambu percorre, sentimos que uma vida de violência só pode ter fins violentos.

Se em filmes como Tudo vai mal Suzuki mostra pais e adultos preocupados com os rumos da juventude japonesa no pós-II Guerra Mundial, em Elegia da briga o máximo que temos é um sermão meia-boca que reflete a ideia de que “a juventude é assim mesmo”. Nambu vive num Japão que está há alguns anos de invadir a China e de declarar guerra aos Estados Unidos. Quando criticado por sua violência, a crítica está mais na linha de quem se beneficia dela – por exemplo, a cena em que Nambu desafia as ordens de um oficial do Exército Imperial, para semanas depois entrar em confronto com uma gangue em Aizu que acredita ser defensora dos ideais do xogunato. (Momento Bruce Historiador: a Guerra Boshin, no século XIX, foi travada entre o xogunato e as forças imperiais japonesas pelo controle do país.) Ambos os lados patrióticos, e o patriotismo será uma das justificativas usadas na tentativa de golpe de estado de que Nambu participará – o chamado Incidente de 26 de fevereiro - e também na II Guerra Mundial. Trata-se de uma luta pela alma do Japão resumida na história de vida de Nambu, que precisará deixar de lado até o que sente por Michiko, já que ela não tem espaço nesse futuro – a cena em que ela é atropelada por um destacamento de soldados e terminamos vendo o crucifixo ao lado de uma caixinha com as bandeiras do Japão Imperial chega a soar como um desafio ao espectador sobre o caminho que ele deve escolher.

Mais acima eu comentei sobre como o filme passa do cômico para o melodramático, mas há pontos em que ele soa neorrealista e isso só faz reforçar a comicidade das próprias ideias que destroem aos poucos a alma de Nambu: toda vez que temos uma batalha campal entre as gangues, as cenas de luta são realistas, e por isso risíveis. Não temos um enquadramento heroico que celebre os combatentes. Tudo que temos deles são ideais de si, como os jovens de Aizu que se acham herdeiros dos samurais que se sacrificaram na luta contra o Império, até mesmo vestidos com uniformes de kendo. Quando Nambu e um colega de Aizu começam a brigar, dois camponeses começam a jogar lama em cima dos dois, tornando-os espelhos, invalidando qualquer diferença ideológica ou social que possam acreditar que tenham; a satisfação facial na briga se iguala à satisfação de se masturbar; na primeira batalha campal, ainda em Okayama, todos armados começam a correr apenas porque viram um uniforme policial – é o pai de Nambu -, e a reação de Nambu é não saber se desce pra ouvir o sermão do pai ou se joga, cometendo harakiri – ele desce. Mas enquanto rimos disso, Suzuki elabora outra leitura: os uniformes dos combatentes ou são da escola militar, de camponeses, de kendo – são adolescentes brincando em uma guerra civil, à moda d’Os meninos da rua Paulo. O espectador fica sem saber se deve rir ou lamentar a situação em cena.

Após tantos filmes que brincam com as convenções de gênero e cinematografia, é estranho ver um filme de Suzuki que seja mais “pé no chão”. Talvez isso se deva também ao envolvimento do roteirista Kaneto Shindo, mais conhecido por dirigir filmes como Filhos de Hiroshima, Kuroneko e A mulher demônio, obras que mesmo de gênero refletem sobre a psique coletiva japonesa. Isso torna Elegia da briga para Suzuki o que Uma história real é para David Lynch: uma obra convencional muito bem realizada por um diretor subversivo.
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A juventude da besta

Enquanto Tóquio violenta e Elegia da briga são ambos do mesmo ano e apresentam as diferentes faces de Seijun Suzuki, A juventude da besta, de três anos antes, é um dos filmes que tornou o diretor famoso junto ao grande público. Estrelado por um galã à la Jean-Paul Belmondo, Joe Shishido, esse noir é um exemplar de obra de gênero: Shishido interpreta Joe, um andarilho encrenqueiro que acaba sendo contratado por uma gangue para ser seu assassino e cobrador de aluguel. Contudo, Joe não é quem aparenta ser, algo que fica claro quando vemos ele comparecer ao funeral de um policial morto e depois quando começa a vender informações dos seus patrões para outra gangue.

Quem leu esse primeiro parágrafo já deve ter enumerado mentalmente vários filmes em que vemos um enredo parecido: Yojimbo, O último matador, Por um punhado de dólares, etc., todos provavelmente influenciados pelo clássico romance Seara vermelha, de Dashiel Hammett. Todas essas obras tratam da necessidade de restaurar a paz em um ambiente dominado pela criminalidade, mas Suzuki não ambiciona tanto: a convenção de um filme noir sobre yakuza trata da luta dentro da criminalidade, não de sua extinção. Nem Suzuki espera e nem o público deve esperar que a resolução seja a realização do “Céu na Terra” - a meta dele é continuar arrancando o verniz respeitável que a sociedade tenta projetar apesar de seus problemas.

Todos esses três filmes eu vi no mesmo dia. Percebi que todos eles compartilham de um tema marginal: a aparência. Em Tóquio violenta, as ideias de honra e lealdade entre yakuza caem por terra quando a ambição fala mais alto; em Elegia da briga, ser respeitável é interpretar um papel, sendo conveniente até certo ponto; e em A juventude da besta, interpretar papeis é um meio de sobrevivência. Conforme o filme avançava, lembrava cada vez mais de Chinatown, de Roman Polanski, onde soar e parecer respeitável esconde o papel que a violência tem.

Para que Joe possa se infiltrar em uma gangue, ele precisa parecer mais grosseiro e violento do que realmente é – da última vez que foi de fato, acabou preso. Para que possa obter informações sobre o policial morto, precisa apresentar uma cara confiável. Para entender como funciona a gangue, precisa ser amistoso para com um de seus parceiros e depois testá-lo sendo maldoso. Joe precisa participar de um jogo onde homens e mulheres se vestem de forma elegante enquanto negociam drogas e vidas humanas. A questão é saber se Joe é tão esperto quanto os heróis do gênero a que pertence.

Esta é uma obra em que Suzuki não faz uso de tantas inovações técnicas ou recursos que questionem a “gramática cinematográfica”. É um filme simples onde as maiores reviravoltas podem ser antecipadas por um conhecimento prévio do gênero. O destaque do filme está mesmo em como Shishido interpreta diferentes personagens em seu Joe: as cenas com a viúva, com os chefes das gangues, com seu colega de gangue, com um ex-parceiro de polícia quando confrontado com a acusação de apropriação indébita, servem todas para mostrar quão versátil e resiliente o protagonista deve ser.

E as cenas de ação? Ah, as cenas de ação. Das cenas de tortura aos combates corpo a corpo, temos uma fisicalidade que rompe com o estilo melodramático repetitivo de filmes noir americanos. A cena de Joe tentando alcançar a arma enquanto está pendurado de ponta cabeça é realista pela frustração compartilhada pelo espectador. Por outro lado, a ideia do assassino com a navalha, que parece ser deixada de lado por um tempo, volta à tona em um final que é violento mesmo não sendo visível – Suzuki sabe quando apelar aos sentidos e quando apelar à imaginação do espectador.

Todos os três filmes compartilham também de um recurso visual curioso: grades – mesmo não visíveis. As grades de Tóquio violenta estão lá para que o protagonista rompa com elas – e quando não as vemos, é porque a narrativa está solta; as de Elegia da briga para lembrar que o protagonista está socialmente preso – e mesmo em planos abertos, ele sempre está em contraposição visual ou psicológica; e as de A juventude da besta são as que o protagonista deve atravessar para depois tentar sair – vide a cena do flashback sobre a acusação de corrupção em frente a um rio, o ponto de virada em sua transformação. O cinema de Suzuki está num ponto em que convenções sociais se chocam com vontades e desejos, mesmo que não aparentes, ilustrados pelo uso e também pelo rompimento das regras de gênero.

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