Resenha: Amália Atrás de Amália, de Marco Aqueiva
“- Bota fora esse silicone
dérmico. Já! Vamos, vamos!”
Sou
neófito em literatura brasileira fantástica – em ficção
científica então… 2019 tem sido dedicado a descobrir o que veio
antes e está sendo feito no momento, e uma das minhas referências
para o aprendizado sobre o gênero em nosso país tem sido o escritor
Nelson de Oliveira (Paraíso Líquido,
Distrito Federal), que
organizou o volume Fractais Tropicais,
que reúne contos antigos e contemporâneos com parte da nata do
gênero. Outra iniciativa da qual está a frente é a coleção
Futuro Infinito, editada pela Editora Patuá, com cinco livros
contados, sendo um deles este de que irei falar: Amália
Atrás de Amália.
Amália
Atrás de Amália se passa num
universo onde a transição de identidade é possível, seja por
meios físicos ou digitais.
Ao mesmo tempo, quem quer que controle a sociedade, seja ela real ou
virtual, está no encalço de Amália por atos tidos como
subversivos. É um mundo distópico que remete ao cyberpunk,
a pobreza e a opressão do mundo real em paralelo com as alternativas
dentro da virtualidade. E em algum ponto, Amália perdeu o contato
com sua filha – ou acha que perdeu.
As
idas e vindas de Amália são contadas em capítulos curtos que
exploram como a memória se dissolve e se constrói a cada identidade
criada ou dita existente.
“De
Nelson, almirante, a uma pedra. Sim, já fui pedra. Não é força de
expressão.”
Esses
volteios vão criando um caleidoscópio das múltiplas vidas e tempos
de Amália, da sua existência tátil – melhor esse termo a “real”,
afinal, a identidade é algo em construção – às fugazes
incorporações necessárias em seus trabalhos. É uma autobiografia
rachada e que se recusa a ser lida de forma isolada. O rejunto é a
própria existência da protagonista. É algo que o leitor pode ter
dificuldade de assimilar, mas não é algo inédito na literatura –
vide Finícius Revém, de James Joyce.
“Não
posso mais brincar de sol e chuva com você.”
[…]
“Amaaaaaaaaaaaaaaaaaaalha”
E
a cada identidade que se cria, a cada vez que a necessidade surge,
algo é deixado pra trás. As fundações precisam ser esquecidas –
desde os eventos com o homem-anfíbio às lembranças da mãe em um
bordel – para que se possa sobreviver, ter uma nova vida.
Entretanto, esses lampejos do passado se infiltram como a tortura de
Harry Angel e o destino de
Johnny Favourite em Coração Satânico,
de William Hjortsberg. Aliás, se a constituição do ser social é
justamente a convenção que define os seres, há um rompimento em
como processo se dá no universo de Amália…:
hierarquias há, mas elas não são claras. Há contrato, mas está
liquefeito. A salvação individual de cada ser – dogma cristão –
é levada à enésima potência. Falando nisso…
“Essa
Inteligência – se existisse mesmo – Ela nos observaria com
enfado e tédio e só nos submeteria a portas e corredores sem fim
porque não há nada além de portas e corredores também para Ela.
Nada além dessas grades infernais.”
A
ideia do “Inferno em vida”, de experimentar o Inferno para além
do dogma cristão, já vinha exposta na peça Entre quatro
paredes, de Jean-Paul Sartre. A leitura disso não precisa ser
embasada na própria cristandade, mas no choque de percepções e
ideias, estimuladora per se de conflitos micro e macro.
Enquanto se vive, se existe, o Inferno está próximo. A busca de
Amália ocorre justamente nesse Inferno coletivo, criado por
“contrato” - e quando falamos em transição de identidade e em
experimentar várias delas…
A
confusão narrativa no romance de Aqueiva é uma proposta que se
mantém firme e conversa com temas científicos, como a
singularidade, e sociológicos, como o senso de identidade.
Parágrafos inteiros não apresentam pontuação clara ou
diferenciação explícita de quem fala, chamando o leitor a
destrinchá-los para encontrar sua essência mas também para que ele
experimente o turbilhão da existência, seja ela interna ou como
animal social.
Amália
atrás de Amália
é um dos romances mais desafiadores e abrangentes – embora curto,
82 páginas – da literatura contemporânea. Que seja capaz de
saltar de temas antropológicos – como o desaparecimento concreto –
a teológicos – qualquer jornada dentro de si é algo espiritual –
é algo impressionante, fazendo o leitor questionar sua apreensão
não só da história do mundo, como também da própria.
Marco
Aqueiva
é poeta e ficcionista. Faz parte do coletivo literário Quatati.
Escreveu o livro de poesia Germes
entre dias brancos e
Sob os próprios
pelos: Seres extraordinários,
ambos pela Patuá.
Bruce, sua resenha toca em aspectos caros à narrativa. Agradecemos Amália e eu seu interesse e divulgação. Parabéns por este torreão! Vivas à Ficção Científica Brasuca!
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