Resenha: A aranha negra, de Jeremias Gotthelf
“Sobre
as montanhas alçou-se o sol, iluminou em límpida majestade um vale
aprazível, porém estreito, e despertou para uma vida alegre os
seres que foram criados para se deleitar com o sol de suas vidas.”
No
posfácio do tradutor Marcus Vinicius Mazzari na edição da Editora
34 de A aranha negra,
ele nos lembra que o tema do “pacto demoníaco” é uma constante
na literatura de língua alemã, indo da lenda original de Johann
Georg Faust, ou “o Fausto original”, apresentada em História
do Doutor Johann Fausto,
a Doutor
Fausto,
de Thomas Mann – e isso que ainda temos Mephisto,
de Klaus Mann. O fato dessa trama ser tão presente na cultura
germânica parece ter um componente histórico que se baseia nas
constantes mudanças pelas quais os povos locais passaram para
sobreviverem, seja isso através da submissão a impérios ultramar,
instituições religiosas ou políticas. Em um desses contextos,
temos A
aranha negra.
A
aranha negra é
um conto dentro de uma novela para então aparecer outro conto.
Gotthelf, pastor protestante suíço, resolve usar na forma escrita
algo semelhante ao que vemos nas rodas de conversa “transcritas”
em Noite
na taverna,
de Álvares de Azevedo, ou O
grande inquisidor
presente em Os
irmãos Karamazov,
de Fiódor Dostoievski: a história que serve ao ensino de uma moral.
Na história, temos o batismo de uma criança em meio a uma grande
festa. Um senhor de idade se retira e alguns familiares o seguem.
Apontando para uma coluna de madeira que tem resistido a inúmeras
reformas da casa, ele resolve contar uma história familiar: o tempo
em que a aldeia toda foi ameaçada por uma aranha incomum.
“O
estado dessas pessoas [da aldeia] dependia a cada vez dos senhores
[feudais]; estes eram muito diferentes entre si e tinham poder
praticamente ilimitado sobre seus servos, que não encontravam
ninguém a quem pudessem prestar queixa de maneira simples e efetiva.
[…]
[Logo
caíram] nas mãos de cavaleiros que se chamavam teutônicos, e o que
comandava aqui era comendador.”
O
que temos é um estado de coisas de opressão social que parece ser
corrigido, mas Gotthelf mais adiante nos informa que a opressão só
mudou de mãos, a tal ponto que o comendador resolve explorar ainda
mais os aldeões ao exigir a construção de um castelo em um curto
espaço de tempo. Todos sabem que é impossível, mas estamos agora
na mão de um sádico. E então…
“...eis
que surgiu repentinamente diante deles, ninguém sabia de onde, um
caçador vestido de verde, espichado e macilento. Sobre a boina
atrevida balançava uma pena vermelha, no rosto escuro flamejava uma
barbicha também rubra...”
Sendo
a cor verde algo comumente relacionada ao Diabo na literatura
medieval, já ficamos atentos a quem é esse indivíduo que promete
ajudar a aldeia, mas…
“...não
estou cobiçando muita coisa, nada mais do que uma criança não
batizada.”
Os
aldeões ficam chocados com a ideia, mas a exploração por parte do
comendador ficava tão pesada que uma das aldeãs, Cristina, resolve
fazer o acordo, selado
com um beijo em seu rosto.
“Os
lábios abicados roçaram o rosto de Cristina e lhe pareceu que uma
ponta de ferro incandescente lhe atravessasse corpo e alma, ossos e
medula.”
Nesse
trecho é importante destacar duas coisas: 1) Cristina é uma
estrangeira, ela não é da região, e isso é enfatizado várias
vezes na trama. Justamente por possuir a vontade de resolver o
problema, tomando uma atitude tão grave como essa, é que a perdição
cairá sobre ela; e 2) o trecho final sobre o beijo é uma referência
bíblica à Palavra de Deus em Hebreus 4:12. Ao fazer o acordo,
Cristina e os aldeões colocam sua confiança no Diabo como se este
realmente fosse poderoso.
O
Diabo resolve o problema dos aldeões e estes resolvem que vão
passá-lo pra trás até…
“[...]
Cristina […] se encolhe silvando e expelindo chamas, até restar
apenas a aranha negra em seu rosto, intumescida e apavorante, e a
mulher funde-se com esta, vai entrando sob chiados no corpo da
aranha...”
E
a aranha começa a matar todos os aldeões. Por ser uma história
contada como se fosse verdade e estabelecesse a origem de um certo
objeto – a coluna de madeira -, A
aranha negra é
tratada como equivalente à
Odisseia
na região suíça em que se originou. O
que temos é uma história clássica entre bem e mal num mundo em que
não se pode contar com o Divino de imediato – segundo algumas
correntes protestantes, “o mundo jaz no maligno”, e por isso a
intercessão divina é quase impossível, dependendo tão somente do
fiel de resistir à tentação.
Quando
a segunda história se apresenta, o tema de resistir à tentação é
substituído pelo de “lutar o bom combate”: somos apresentados a
Cristiano, um rapaz que vive sendo humilhado pela mãe e pela irmã e
que procura viver o ideal cristão. Mas quando a aranha ressurge, ele
é compelido a fazer algo além para evitar a destruição da aldeia.
Pelas histórias, temos então que não basta acreditar, mas é
preciso agir de acordo – afinal, os teutônicos também eram
cristãos e exploravam os aldeões.
Alegoria
religiosa de lado, a alegoria política se mostra clara também para
além da questão sobre Cristiana ser estrangeira: se pensarmos a
história suíça através da trama, veremos a passagem do
catolicismo para a solidificação da reforma, mesmo que isso não
esteja claro no texto. A
aranha é o elo comum entre as religiões por ser oriunda do Diabo.
Na forma de um conto popular, Gotthelf tenta ensinar o que seria o
verdadeiro cristianismo.
A
essa altura da leitura, o leitor deve estar pensando se a trama se
resume a isso, a um ensinamento religioso – de forma alguma. A
moral da história em Coéforas
é
“não mate sua mãe”, mas o elemento mais impressionante que
temos é a aparição assustadora das fúrias. O impacto do terror da
aranha negra é contundente.
“A
pedra mais pesada não a esmagava, o machado mais afiado não a
feria, incólume ela rastejava ao encontro dos agressores,
inesperadamente alojava-se em seus rostos. Fuga, resistência, tudo
em vão. Então toda esperança se extinguiu e o desespero tomou
conta do vale, alastrando-se pelas montanhas.”
Temos
uma criatura maligna que não pode ser destruída por nada que esteja
no maligno – o mundo. (Se fosse William Peter Blatty em Legião,
essa confusão seria de ordem elementar, onde o Diabo e o universo
são um só.) A descrição acima da transformação de Cristina em
aranha é algo
que pode ser visto tanto na transformação de Medusa como na Coisa
do conto de John W Campbell, exemplos de horror cósmico e horror
corporal.
A
moral na história de Gotthelf é que é preciso observar para não
trazer o mal sobre si. Mas saber essa moral não nos tira da cabeça
a constatação de que aquele universo se confunde com esse mal, o
que deixa o leitor constantemente inquieto.
Jeremias
Gotthelf
(originalmente Albert Bitzius) (1797-1854) foi um pastor e escritor
suíço. Sua obra é marcada pelo desejo de falar de temas idílicos
– algo relacionado à fase artística conhecida como Biedermaier
– e relacioná-los à cultura popular igual os irmãos Grimm.
Comentários
Postar um comentário