Ip Man - Uma Reflexão
Ideologicamente falando, a série de filmes mais bem-sucedida no momento é Ip Man, com 4 filmes dirigidos por Wilson Yip e estrelados por Donnie Yen. A tetralogia acompanha o professor de wing chun Ip Man desde suas experiências durante a ocupação japonesa na Manchúria até seu encontro final com o discípulo Bruce Lee nos EUA. Contudo, boa parte da história de vida de Ip Man nesses filmes é ficção, desde seu papel como resistente aos japoneses - há quem diga que ele tenha sido colaboracionista - aos confrontos com lutadores internacionais para mostrar que o kung fu era a melhor das artes marciais - inspirado na história de Huo Yuanjia - até o reencontro com Bruce Lee - Lee treinou com Man ainda jovem, mas o reencontro teria ocorrido em Hong Kong. Mas como e por que essa franquia funciona com tamanhas liberdades e porque eu digo que é tão bem-sucedida? Vamos por partes.
1) Ideal de herói: o fato de Ip Man ser um homem de família, bondoso, paciente, de hábitos simples o situa num patamar ideal. Sua agressividade se limita apenas ao combate e é difícil ver Yen fazendo uma "cara de mal" que seja. Man é um sábio que está bem consigo mas que precisa se impor a um mundo caótico, embora por vezes ele relute em fazer isso até que haja uma ameaça imediata. Diferente dos heróis ocidentais que gostam de chegar na pancada e causar dano desmedido para estabelecer "quem manda", Man só causa dano - quando causa - quando é moralmente obrigado. Quando os japoneses ocupam a China no primeiro filme, ele só luta contra o oficial japonês por obrigação; no segundo filme, só luta contra um boxeador americano porque a honra da China está em jogo; e no terceiro, luta contra um professor rival apenas por cortesia, ele não faz questão do título de melhor professor ou de melhor estilo de wing chun - ele é humilde a esse ponto, tanto que quem quebra a placa com a distinção é o próprio rival.
2) O tipo de herói que a China gera: Ip Man realmente existiu assim como Huo Yuanjia e Wong Fei-hung, ambos mestres de kung fu. Contudo, as adaptações cinematográficas de suas vidas os tornaram lendas. Ambos foram interpretados no cinema por Jet Li, respectivamente em O Mestre das Armas e Era Uma Vez na China. Antes de O Mestre das Armas ser lançado, a menção mais famosa a Yuanjia foi no filme A Fúria do Dragão, onde a personagem de Bruce Lee, Chen Zhen, é um discípulo de Huo que ouve que o mestre morreu em circunstâncias misteriosas - na vida real Yuanjia morreu envenenado. Anos antes, Yuanjia lutou contra um boxeador irlandês e um lutador russo que haviam ofendido os chineses - e venceu. Em A Fúria do Dragão, Yuanjia teria lutado contra um carateca japonês durante a ocupação da China; a trama acompanhava Zhen investigando como o mestre teria sido derrotado facilmente por uns lutadores médios - sim, vocês viram essa trama também em Lutar ou Morrer, com Jet Li, que é um remake. Ocorre que personalidades históricas na literatura chinesa sempre ganharam um status lendário, colocando-as num plano elevado em relação aos demais mortais. Se ninguém tivesse feito filmes sobre Yuanjia e Fei-hung, bastaria acompanhar as histórias de Chen Zhen e Fong Sai Yuk - também interpretados por Jet Li em Lutar ou Morrer e A Saga de um Herói -, personagens que remetem aos ideais de personagens históricas reais. O mais próximo disso no Ocidente é o xerife Pusser em Fibra de Valente, que realmente existiu mas gerou mais filmes do que seus feitos reais dariam conta. São heróis que inspiram, e não à toa Yip resolveu utilizar eventos relacionados a esses heróis em cenas da franquia Ip Man - a luta contra 10 caratecas no primeiro filme é uma recriação da luta de Chen Zhen no dojo em A Fúria do Dragão e Lutar ou Morrer, a luta contra o boxeador no segundo filme é da história de Huo Yuanjia, etc. Depois vou explicar como tudo se encaixa.
3) O gênero wuxia: wuxia é o gênero artístico de chinês que explora histórias antigas e folclores locais envolvendo artistas marciais. Filmes como Tai Chi, Os Cinco Dedos da Morte, A Tocha de Zen, O Tigre e o Dragão, Herói, etc. fazem parte do gênero. Quando a revolução comunista ocorreu na China, boa parte dessa história se perdeu pela ideia de que era preciso olhar para o futuro. Mas os chineses que fugiram para Formosa/Taiwan e os que estavam em Hong Kong mantiveram o gênero vivo, renovando o estilo e contando novas histórias, algumas ousando ir até o começo do século XX - vide Jackie Chan em Projeto China 2 lutando contra o imperialismo britânico em plena Hong Kong ainda não devolvida à China! Entretanto, algumas pessoas achavam que já estava na hora de levar a arte marcial além da dimensão lendária que ela tinha - eis que aparece Bruce Lee.
4) Bruce Lee: sim, haviam tramas contemporâneas com artes marciais no cinema asiático, mas Lee tinha um propósito: divulgar as artes marciais chinesas e mostrar como elas permaneciam relevantes no mundo atual. Ao filmar O Dragão Chinês, ele cria uma personagem algo humilde que também só entra na briga quando necessário - em vários filmes, Lee fazia questão de reforçar uma expressão de dor no rosto ao matar um adversário para mostrar que independente da motivação, ainda era uma morte No caso de O Dragão Chinês, tratava-se de um traficante que colocava em perigo a vida da família do protagonista. Logo seus filmes causam grande impacto sobre o Ocidente, inspirando blaxpoitation com artes marciais como Jones, o Faixa-Preta, e abrindo espaço para tramas urbanas asiáticas com artes marciais também. Jackie Chan, que começou com wuxia, logo passaria a filmar tramas urbanas como A Guerra das Drogas. Durante esse período de sucesso e em visita a Hong Kong, Lee reencontrou o antigo mestre Ip Man.
5) O cinema chinês pós-1990: a abertura gradual do mercado chinês nos anos 1990 fez estimular uma procura por tramas que tratassem da história da China, como Sorgo Vermelho, de Zhang Yimou. A China percebe que negligenciar a história é botar em risco o futuro e aos poucos começa a receber filmes de Hong Kong que contam histórias envolvendo esses heróis do passado, fictícios ou reais. O sucesso dessas tramas no cinema ocidental é o que estimulará o país a abrir parceiras de filmagem local com tramas wuxia, tais como A Promessa. Diretores críticos da China passam a ser vistos como aliados pois eles sabem o que o público ocidental quer ver da China. Vide que Jackie Chan chega a fazer um filme da franquia Police Story para falar sobre um policial continental - até então os filmes eram sobre policiais de Hong Kong. Novos nomes começam a se destacar no cinema, e um deles é Wu Jing, artista marcial nascido na China e que atuou em Hong Kong durante algumas décadas. Após ganhar conhecimento do cinema mundial, ele traz algo novo para a China que conversa com o crescimento econômico do país: a China como "salvadora do mundo" no presente. Dirigindo e estrelando a série de filmes Wolf Warrior e depois estrelando The Wandering Earth, Wu Jing se torna a cara do presente chinês da mesma forma que Stallone era a cara dos EUA em Rocky IV e Rambo II e III. Contudo, faltava fechar o círculo.
6) Abraçar o passado: é desnecessário dizer que a China passou décadas sem se preocupar com filmes wuxia. Os filmes mais populares eram os que falavam da revolução comunista - e ainda são, eles filmaram vários recentemente com atores chineses e de ascendência chinesa. Mas o novo momento chinês exigiu uma reflexão: a China se tornou uma potência agora ou ela sempre foi uma potência? Se formos falar em cinema, ela sempre foi. Ninguém diz que os golpes caricatos de caratê de Henry Silva em Sob o Domínio do Medo e Sean Connery em 007 contra Moscou estabeleceram o caratê no Ocidente, mas tramas wuxia fizeram encher academias de kung fu - Bruce Lee, por exemplo, ficou conhecido por ser o primeiro chinês a ensinar estrangeiros essa arte marcial, tendo discípulos como Steve McQueen, James Coburn e Chuck Norris. Os filmes wuxia e as tramas urbanas de Bruce Lee renovaram a ação no cinema, algumas vezes de forma caricata mas também estimulando o dinamismo nas coreografias até de outras artes marciais. Ou seja, um chinês influenciou o cinema ocidental. Então chega Ip Man 2, 3 e 4, onde o mestre de wing chun é apresentado a Lee na infância, na juventude e reencontra o discípulo que criou um estilo próprio de combate, o jeet kune do, que vai na contramão do que os estilos de kung fu pareciam priorizar. Mas ei, segundo a história, sem Ip Man, sem Bruce Lee. Logo, um herói chinês inspirou outro chinês a tornar-se herói de seu povo e, com isso, conquistou o mundo - é como se fosse o próprio Destino movendo a história da China.
Japoneses, ingleses e até americanos tentaram impedir a China de conquistar o mundo, mas Ip Man, o herói chinês por excelência, não retrocedeu. Toda vez que alguém vê Jean-Claude Van Damme quebrar um tijolo só pra ouvir que "tijolo não revida", ali está Bruce Lee. Quando Beatrix Kiddo aparece de uniforme amarelo e começa a bater em todo mundo em Kill Bill - Volume 1, ali está Bruce Lee. Neo chamando Morpheus pra briga em Matrix? Bruce Lee. E foi Ip Man, de acordo com esses filmes e pelo tanto que se possa acreditar de sua influência histórica, quem colaborou pra isso.
1) Ideal de herói: o fato de Ip Man ser um homem de família, bondoso, paciente, de hábitos simples o situa num patamar ideal. Sua agressividade se limita apenas ao combate e é difícil ver Yen fazendo uma "cara de mal" que seja. Man é um sábio que está bem consigo mas que precisa se impor a um mundo caótico, embora por vezes ele relute em fazer isso até que haja uma ameaça imediata. Diferente dos heróis ocidentais que gostam de chegar na pancada e causar dano desmedido para estabelecer "quem manda", Man só causa dano - quando causa - quando é moralmente obrigado. Quando os japoneses ocupam a China no primeiro filme, ele só luta contra o oficial japonês por obrigação; no segundo filme, só luta contra um boxeador americano porque a honra da China está em jogo; e no terceiro, luta contra um professor rival apenas por cortesia, ele não faz questão do título de melhor professor ou de melhor estilo de wing chun - ele é humilde a esse ponto, tanto que quem quebra a placa com a distinção é o próprio rival.
2) O tipo de herói que a China gera: Ip Man realmente existiu assim como Huo Yuanjia e Wong Fei-hung, ambos mestres de kung fu. Contudo, as adaptações cinematográficas de suas vidas os tornaram lendas. Ambos foram interpretados no cinema por Jet Li, respectivamente em O Mestre das Armas e Era Uma Vez na China. Antes de O Mestre das Armas ser lançado, a menção mais famosa a Yuanjia foi no filme A Fúria do Dragão, onde a personagem de Bruce Lee, Chen Zhen, é um discípulo de Huo que ouve que o mestre morreu em circunstâncias misteriosas - na vida real Yuanjia morreu envenenado. Anos antes, Yuanjia lutou contra um boxeador irlandês e um lutador russo que haviam ofendido os chineses - e venceu. Em A Fúria do Dragão, Yuanjia teria lutado contra um carateca japonês durante a ocupação da China; a trama acompanhava Zhen investigando como o mestre teria sido derrotado facilmente por uns lutadores médios - sim, vocês viram essa trama também em Lutar ou Morrer, com Jet Li, que é um remake. Ocorre que personalidades históricas na literatura chinesa sempre ganharam um status lendário, colocando-as num plano elevado em relação aos demais mortais. Se ninguém tivesse feito filmes sobre Yuanjia e Fei-hung, bastaria acompanhar as histórias de Chen Zhen e Fong Sai Yuk - também interpretados por Jet Li em Lutar ou Morrer e A Saga de um Herói -, personagens que remetem aos ideais de personagens históricas reais. O mais próximo disso no Ocidente é o xerife Pusser em Fibra de Valente, que realmente existiu mas gerou mais filmes do que seus feitos reais dariam conta. São heróis que inspiram, e não à toa Yip resolveu utilizar eventos relacionados a esses heróis em cenas da franquia Ip Man - a luta contra 10 caratecas no primeiro filme é uma recriação da luta de Chen Zhen no dojo em A Fúria do Dragão e Lutar ou Morrer, a luta contra o boxeador no segundo filme é da história de Huo Yuanjia, etc. Depois vou explicar como tudo se encaixa.
3) O gênero wuxia: wuxia é o gênero artístico de chinês que explora histórias antigas e folclores locais envolvendo artistas marciais. Filmes como Tai Chi, Os Cinco Dedos da Morte, A Tocha de Zen, O Tigre e o Dragão, Herói, etc. fazem parte do gênero. Quando a revolução comunista ocorreu na China, boa parte dessa história se perdeu pela ideia de que era preciso olhar para o futuro. Mas os chineses que fugiram para Formosa/Taiwan e os que estavam em Hong Kong mantiveram o gênero vivo, renovando o estilo e contando novas histórias, algumas ousando ir até o começo do século XX - vide Jackie Chan em Projeto China 2 lutando contra o imperialismo britânico em plena Hong Kong ainda não devolvida à China! Entretanto, algumas pessoas achavam que já estava na hora de levar a arte marcial além da dimensão lendária que ela tinha - eis que aparece Bruce Lee.
4) Bruce Lee: sim, haviam tramas contemporâneas com artes marciais no cinema asiático, mas Lee tinha um propósito: divulgar as artes marciais chinesas e mostrar como elas permaneciam relevantes no mundo atual. Ao filmar O Dragão Chinês, ele cria uma personagem algo humilde que também só entra na briga quando necessário - em vários filmes, Lee fazia questão de reforçar uma expressão de dor no rosto ao matar um adversário para mostrar que independente da motivação, ainda era uma morte No caso de O Dragão Chinês, tratava-se de um traficante que colocava em perigo a vida da família do protagonista. Logo seus filmes causam grande impacto sobre o Ocidente, inspirando blaxpoitation com artes marciais como Jones, o Faixa-Preta, e abrindo espaço para tramas urbanas asiáticas com artes marciais também. Jackie Chan, que começou com wuxia, logo passaria a filmar tramas urbanas como A Guerra das Drogas. Durante esse período de sucesso e em visita a Hong Kong, Lee reencontrou o antigo mestre Ip Man.
5) O cinema chinês pós-1990: a abertura gradual do mercado chinês nos anos 1990 fez estimular uma procura por tramas que tratassem da história da China, como Sorgo Vermelho, de Zhang Yimou. A China percebe que negligenciar a história é botar em risco o futuro e aos poucos começa a receber filmes de Hong Kong que contam histórias envolvendo esses heróis do passado, fictícios ou reais. O sucesso dessas tramas no cinema ocidental é o que estimulará o país a abrir parceiras de filmagem local com tramas wuxia, tais como A Promessa. Diretores críticos da China passam a ser vistos como aliados pois eles sabem o que o público ocidental quer ver da China. Vide que Jackie Chan chega a fazer um filme da franquia Police Story para falar sobre um policial continental - até então os filmes eram sobre policiais de Hong Kong. Novos nomes começam a se destacar no cinema, e um deles é Wu Jing, artista marcial nascido na China e que atuou em Hong Kong durante algumas décadas. Após ganhar conhecimento do cinema mundial, ele traz algo novo para a China que conversa com o crescimento econômico do país: a China como "salvadora do mundo" no presente. Dirigindo e estrelando a série de filmes Wolf Warrior e depois estrelando The Wandering Earth, Wu Jing se torna a cara do presente chinês da mesma forma que Stallone era a cara dos EUA em Rocky IV e Rambo II e III. Contudo, faltava fechar o círculo.
6) Abraçar o passado: é desnecessário dizer que a China passou décadas sem se preocupar com filmes wuxia. Os filmes mais populares eram os que falavam da revolução comunista - e ainda são, eles filmaram vários recentemente com atores chineses e de ascendência chinesa. Mas o novo momento chinês exigiu uma reflexão: a China se tornou uma potência agora ou ela sempre foi uma potência? Se formos falar em cinema, ela sempre foi. Ninguém diz que os golpes caricatos de caratê de Henry Silva em Sob o Domínio do Medo e Sean Connery em 007 contra Moscou estabeleceram o caratê no Ocidente, mas tramas wuxia fizeram encher academias de kung fu - Bruce Lee, por exemplo, ficou conhecido por ser o primeiro chinês a ensinar estrangeiros essa arte marcial, tendo discípulos como Steve McQueen, James Coburn e Chuck Norris. Os filmes wuxia e as tramas urbanas de Bruce Lee renovaram a ação no cinema, algumas vezes de forma caricata mas também estimulando o dinamismo nas coreografias até de outras artes marciais. Ou seja, um chinês influenciou o cinema ocidental. Então chega Ip Man 2, 3 e 4, onde o mestre de wing chun é apresentado a Lee na infância, na juventude e reencontra o discípulo que criou um estilo próprio de combate, o jeet kune do, que vai na contramão do que os estilos de kung fu pareciam priorizar. Mas ei, segundo a história, sem Ip Man, sem Bruce Lee. Logo, um herói chinês inspirou outro chinês a tornar-se herói de seu povo e, com isso, conquistou o mundo - é como se fosse o próprio Destino movendo a história da China.
Japoneses, ingleses e até americanos tentaram impedir a China de conquistar o mundo, mas Ip Man, o herói chinês por excelência, não retrocedeu. Toda vez que alguém vê Jean-Claude Van Damme quebrar um tijolo só pra ouvir que "tijolo não revida", ali está Bruce Lee. Quando Beatrix Kiddo aparece de uniforme amarelo e começa a bater em todo mundo em Kill Bill - Volume 1, ali está Bruce Lee. Neo chamando Morpheus pra briga em Matrix? Bruce Lee. E foi Ip Man, de acordo com esses filmes e pelo tanto que se possa acreditar de sua influência histórica, quem colaborou pra isso.
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