Reflexões Rápidas: Crepúsculo
Eu sou uma daquelas pessoas que leu a saga (sic) Crepúsculo e pensou, "caramba, sério que as pessoas perdem tempo com isso?" Eu não consegui entender como algo banal e de prosa púrpura podia despertar tanto interesse, a ponto de sempre zoar a obra quando desse. Continuo zoando hoje, mas anos depois, e agora com esse anúncio de Midnight Sun, eu acho que entendi o apelo em um dado nível. Não creio que Crepúsculo tenha feito sucesso pela sua qualidade, mas acho que seu impacto pode ser explicado observando um outro autor popular: Nicholas Sparks. Se você for pensar quais as referências de romance para o grande público, elas vinham do cinema e das séries de TV. Filmes da década de 1980 como Sintonia de Amor e Feitos Um para o Outro exploravam o descompasso dos ideais românticos de mulheres e homens e retomaram algo que se tornou uma marca das comédias românticas desde então: o cinismo. (Digo "retomaram" porque o conflito de gêneros e o cinismo eram clássicos do cinema antigo, vide His Girl Friday, Bringing Up Baby, The Philadelphia Story, etc.)
O cínico entra em cena para questionar as idealizações, seja na figura do coadjuvante - Rupert Everett em O Casamento do Meu Melhor Amigo - ou de um protagonista (mais recorrente) - James Marsden em Vestida para Casar, Robert Downey Jr em Só Você, McConaughey e Hudson em Como Perder um Homem em Dez Dias. Você quer um romance, a possibilidade do romance, mas uma personagem, quando não você mesmo, o protagonista, fica a olhar o mundo e apontar quão problemático ele é, como as relações estão fadadas ao fracasso, etc. E isso é filme após filme após filme - vide que a figura do alívio cômico sarcástico que é amigo do protagonista se solidifica aí, e podemos citar vários atores que ficaram marcados com esse papel: Rupert Everett, Kathryn Hahn, Judy Greer, etc.
Então, algo acontece no reino de Hollywood: ao som do cover de Torn por Natalie Imbruglia e anos antes de uma interpretação corporal incrível, Uma Carta de Amor chega aos cinemas. Com Kevin Costner, astro de outros filmes românticos como Por Amor, e Robin Wright, é a primeira adaptação de um romance de Nicholas Sparks - Um Amor para Recordar vem anos depois. Agora, é claro que existiram vários filmes românticos entre os anos 1980 e 1990 e 2000 - O Guarda-Costas, Segredos do Coração, As Pontes de Madison, O Retorno de um Estranho, O Paciente Inglês, Meu Querido Presidente -, mas Uma Carta de Amor mostrou a força do nome de Sparks e da fórmula do autor: uma trama romântica que segue a linha do verso moraeseano ao-meu-amor-serei-atento. Tratava-se de um homem que jogava cartas ao mar como se as enviasse para a falecida esposa, uma releitura do sofrimento de Orfeu pela perda de Eurídice.
O público foi capturado por esse amor tão dedicado e que depois é revisitado em outras obras do autor, até com versões teen como o filme mencionado acima - e por que não? Comédias românticas adolescentes acompanharam o cinismo das adultas - vide Freddie Prinze Jr em Ela é Demais ou Colin Hanks em Volta por Cima. As adaptações de Sparks resultam na ideia de que a concretização do amor é possível nesta esfera da vida, mesmo que seja tragicamente interrompida. Diferente de Titanic ou Cidade dos Anjos ou Amor Além da Vida, que apontam para um espaço transcendental onde os amantes podem se reconectar, com Sparks a experiência do amor é esse próprio espaço, e daí a necessidade de cultivá-lo idealmente, partindo de ideais românticos de outrora expressos em lendas, romances de cavalaria ou na Bíblia.
Esse é o espaço perfeito para Crepúsculo fazer sucesso: o público adolescente continua sendo bombardeado com obras e filmes que mantém esse teor cínico sobre relacionamentos - vide a reclamação da protagonista de A Mentira, que repete a reclamação da protagonista de Sintonia de Amor -, onde a resolução positiva não supera os problemas apontados ao longo da trama, e encontra um livro onde uma personagem masculina a) age de forma meio estranha perto da protagonista, mas estilo Mr Darcy, e b) não precisa ser redimida/transformada pelo amor - Bella Swan não é uma manic pixie dream girl. Um homem bem resolvido enfim em uma obra romântica! Já superou desde o bobalhão de Cary Grant em Bringing up Baby ao convencido Matthew McConaughey em Como Perder um Homem em Dez Dias! A possibilidade de um amor pleno está ali diante dos olhos dos leitores. Os únicos problemas são de ordem externa - vampiros... ah é, esqueci desse detalhe: ele é um vampiro... vampiros que querem matar Bella e... só. É, parece um filme de ação dos anos 1990, tipo aquele do Stephen Baldwin com a Cindy Crawford - e biológica - mas desde Mrs Caliban, de Rachel Ingalls, que isso virou só um detalhe.
O que Stephenie Meyer entrega aos leitores é o sonho em palavras e isso impacta naturalmente porque além do cenário social propício para isso, volta e meia um terapeuta ou guru nos diz que devemos colocar os conteúdos da nossa mente por escrito para aprendermos a lidar com eles. Como Crepúsculo envolve uma explosão de um desejo latente, reprimido pela fórmulas comerciais de então, o sucesso que teve não parece tão surpreendente, mas a capacidade da autora de perceber que muitos se identificariam com ela nesse aspecto atesta seu mérito.
Que isso tenha se espalhado para leitores adultos é consequência - o desejo de escapismo e idealização atravessa todas as faixas etárias, ou o que é Outlander para além de uma desconstrução do ideal romântico histórico como gênero literário mas que mantém o amor que atravessa eras em seu cerne, à la Em Algum Lugar do Passado? Que anos mais tarde uma fic tenha ganhado vida, voltada à vida adulta, também faz parte. Crepúsculo e Cinquenta Tons de Cinza fizeram sucesso em meio às ansiedades da liquidez cada vez mais gradual da vida, a necessidade de compartimentalizar e prosperar em um mundo agressivo e competitivo, onde a possibilidade de um sentimento compartilhado genuíno não é pra ser alvo de chacota, mas pra ser defendido - vide a cena em que a Ginnifer Goodwin fala isso pro Justin Long em Ele Não Está Tão a Fim de Você, algo na linha de, "ei, pode continuar agindo assim e eu posso fazer muita besteira e quebrar a cara muitas vezes, mas enquanto você continua sozinho, eu fico cada vez mais próxima do amor."
Em resumo: Crepúsculo resgatou o amor - de certo modo e com uma prosa questionável - num mundo desacreditado. Duvido que Midnight Sun terá o mesmo impacto - vide que até as obras de Nicholas Sparks já chegaram num ponto de exaustão -, mas dá pra entender porque tantos anseiam esse retorno a Forks.
O cínico entra em cena para questionar as idealizações, seja na figura do coadjuvante - Rupert Everett em O Casamento do Meu Melhor Amigo - ou de um protagonista (mais recorrente) - James Marsden em Vestida para Casar, Robert Downey Jr em Só Você, McConaughey e Hudson em Como Perder um Homem em Dez Dias. Você quer um romance, a possibilidade do romance, mas uma personagem, quando não você mesmo, o protagonista, fica a olhar o mundo e apontar quão problemático ele é, como as relações estão fadadas ao fracasso, etc. E isso é filme após filme após filme - vide que a figura do alívio cômico sarcástico que é amigo do protagonista se solidifica aí, e podemos citar vários atores que ficaram marcados com esse papel: Rupert Everett, Kathryn Hahn, Judy Greer, etc.
Então, algo acontece no reino de Hollywood: ao som do cover de Torn por Natalie Imbruglia e anos antes de uma interpretação corporal incrível, Uma Carta de Amor chega aos cinemas. Com Kevin Costner, astro de outros filmes românticos como Por Amor, e Robin Wright, é a primeira adaptação de um romance de Nicholas Sparks - Um Amor para Recordar vem anos depois. Agora, é claro que existiram vários filmes românticos entre os anos 1980 e 1990 e 2000 - O Guarda-Costas, Segredos do Coração, As Pontes de Madison, O Retorno de um Estranho, O Paciente Inglês, Meu Querido Presidente -, mas Uma Carta de Amor mostrou a força do nome de Sparks e da fórmula do autor: uma trama romântica que segue a linha do verso moraeseano ao-meu-amor-serei-atento. Tratava-se de um homem que jogava cartas ao mar como se as enviasse para a falecida esposa, uma releitura do sofrimento de Orfeu pela perda de Eurídice.
O público foi capturado por esse amor tão dedicado e que depois é revisitado em outras obras do autor, até com versões teen como o filme mencionado acima - e por que não? Comédias românticas adolescentes acompanharam o cinismo das adultas - vide Freddie Prinze Jr em Ela é Demais ou Colin Hanks em Volta por Cima. As adaptações de Sparks resultam na ideia de que a concretização do amor é possível nesta esfera da vida, mesmo que seja tragicamente interrompida. Diferente de Titanic ou Cidade dos Anjos ou Amor Além da Vida, que apontam para um espaço transcendental onde os amantes podem se reconectar, com Sparks a experiência do amor é esse próprio espaço, e daí a necessidade de cultivá-lo idealmente, partindo de ideais românticos de outrora expressos em lendas, romances de cavalaria ou na Bíblia.
Esse é o espaço perfeito para Crepúsculo fazer sucesso: o público adolescente continua sendo bombardeado com obras e filmes que mantém esse teor cínico sobre relacionamentos - vide a reclamação da protagonista de A Mentira, que repete a reclamação da protagonista de Sintonia de Amor -, onde a resolução positiva não supera os problemas apontados ao longo da trama, e encontra um livro onde uma personagem masculina a) age de forma meio estranha perto da protagonista, mas estilo Mr Darcy, e b) não precisa ser redimida/transformada pelo amor - Bella Swan não é uma manic pixie dream girl. Um homem bem resolvido enfim em uma obra romântica! Já superou desde o bobalhão de Cary Grant em Bringing up Baby ao convencido Matthew McConaughey em Como Perder um Homem em Dez Dias! A possibilidade de um amor pleno está ali diante dos olhos dos leitores. Os únicos problemas são de ordem externa - vampiros... ah é, esqueci desse detalhe: ele é um vampiro... vampiros que querem matar Bella e... só. É, parece um filme de ação dos anos 1990, tipo aquele do Stephen Baldwin com a Cindy Crawford - e biológica - mas desde Mrs Caliban, de Rachel Ingalls, que isso virou só um detalhe.
O que Stephenie Meyer entrega aos leitores é o sonho em palavras e isso impacta naturalmente porque além do cenário social propício para isso, volta e meia um terapeuta ou guru nos diz que devemos colocar os conteúdos da nossa mente por escrito para aprendermos a lidar com eles. Como Crepúsculo envolve uma explosão de um desejo latente, reprimido pela fórmulas comerciais de então, o sucesso que teve não parece tão surpreendente, mas a capacidade da autora de perceber que muitos se identificariam com ela nesse aspecto atesta seu mérito.
Que isso tenha se espalhado para leitores adultos é consequência - o desejo de escapismo e idealização atravessa todas as faixas etárias, ou o que é Outlander para além de uma desconstrução do ideal romântico histórico como gênero literário mas que mantém o amor que atravessa eras em seu cerne, à la Em Algum Lugar do Passado? Que anos mais tarde uma fic tenha ganhado vida, voltada à vida adulta, também faz parte. Crepúsculo e Cinquenta Tons de Cinza fizeram sucesso em meio às ansiedades da liquidez cada vez mais gradual da vida, a necessidade de compartimentalizar e prosperar em um mundo agressivo e competitivo, onde a possibilidade de um sentimento compartilhado genuíno não é pra ser alvo de chacota, mas pra ser defendido - vide a cena em que a Ginnifer Goodwin fala isso pro Justin Long em Ele Não Está Tão a Fim de Você, algo na linha de, "ei, pode continuar agindo assim e eu posso fazer muita besteira e quebrar a cara muitas vezes, mas enquanto você continua sozinho, eu fico cada vez mais próxima do amor."
Em resumo: Crepúsculo resgatou o amor - de certo modo e com uma prosa questionável - num mundo desacreditado. Duvido que Midnight Sun terá o mesmo impacto - vide que até as obras de Nicholas Sparks já chegaram num ponto de exaustão -, mas dá pra entender porque tantos anseiam esse retorno a Forks.
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