Reflexões Rápidas: Dois Papas, de Fernando Meirelles

Uma das coisas que eu aprendi nas aulas de roteiro é que uma história não se faz apenas pela narrativa, mas também pelo simbolismo apresentado ao longo da trama. Um exemplo claro é o romance A Leste do Éden, de John Steinbeck. A trama toda ocorre porque um pai privilegia mais um filho que o outro, retomando a história de Caim e Abel. Entretanto, o final se torna positivo na trama de Steinbeck porque uma das personagens comenta sobre como um termo em hebraico, timshel, na verdade expõe a Caim a escolha entre fazer o mal e o bem, mostrando que o apego do irmão ao fracasso de sua própria vida não deveria prosseguir se assim ele quisesse - Caim falhou, segundo uma tradução errônea, porque não conseguiu ser como Javé queria. (Hoje sabemos que o termo na verdade é "timshol" e que Javé esperava que Caim realmente não fosse às vias de fato. Irônico para um ser onipotente.) Isso me veio à mente enquanto eu matutava sobre Dois Papas, de Fernando Meirelles. Enquanto o símbolo que leva o romance de Steinbeck adiante é um termo linguístico mal traduzido, no filme de Meirelles a transição para o reencontro entre Bergoglio e Ratzinger ocorrerá com uma mensagem entregue após o futuro papa Bento XVI cortar o cabelo ao se preparar para ir à Roma. Na história de Francisco de Assis, de quem Bergoglio tomará o nome oficial para se tornar papa, o santo e seus colegas procederam da mesma forma antes de irem ao encontro do papa Inocente III. Francisco apresentou seus motivos para fundar uma ordem e o papa e seus assessores questionaram se isso era viável pela forma como eles viviam. O papa decidiu pela criação da ordem após ter sonhado com Francisco segurando com as mãos a Arquibasílica de São João de Latrão, a mais antiga basílica católica, que estava prestes a desmoronar, vendo nele a salvação para a base da Igreja Católica. A toada do filme vai progredindo em pontos que reforçam a simplicidade de Bergoglio em contraste com a pompa do Vaticano, e logo o simbólico está em como o argentino introjeta não só o comportamento como também alguns eventos da vida de Francisco (cortar o cabelo pra encontrar o Papa, buscar no rebaixamento do ser a renovação de caráter, reconhecer a autoridade da Igreja mesmo discordando de algumas de suas decisões, escolher roupas simples, o jeito jocoso de se expressar etc.). O que temos no filme é a aparição do santo salvador - Bergoglio - para uma igreja que desmorona - as acusações contra os assistentes de Bento XVI e membros da alta cúpula da Igreja. Mas não podemos nos enganar: ao mesmo tempo que Meirelles mostra o santo, também revela o humano que há ali, que se arrepende do mal que fez. O filme precisa funcionar a nível simbólico, na aspiração de Bergoglio ao exemplo que ele tem tal qual Francisco inspirado pelo de Cristo, e também narrativo, aceitando a complexidade do caráter humano.

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