Resenha: Flores para Algernon, de Daniel Keyes
“3 de marsso –
Dotor Strauss diz que eu deveria iscrever o que eu penso e mi lembra
de tudo que acontese de agora endiante.”
Na
década de 1990, a autora americana Sapphire lançou Push,
livro que posteriormente foi adaptado para o cinema por Lee Daniels –
Preciosa. A trama
trata de uma adolescente negra e obesa, vítima de abuso sexual por
parte dos pais, que através da literatura e da escrita descobre como
se expressar para além de um mundo que a restringe, que a
desqualifica por suas condições socialmente marginais. Sapphire
constrói essa percepção gradual através da escrita de Preciosa, a
protagonista, que conforme lê e escreve mais, melhora sua forma de
se comunicar com o mundo ao deixar mais claro como ela enxerga a
vida, a linguagem em comum a tornando parte do todo.
Na
década de 1960, Daniel Keyes tem uma ideia que pressagiará não só
Push,
como também O
leitor,
de Bernhard Schlink: como a linguagem é utilizada e se transforma
nas mãos de alguém que apresenta deficiência intelectual e depois
se torna um gênio? Se é verdade que “os limites da linguagem são
os limites do meu mundo” como diz tio Wittgenstein, então o
conhecimento que os protagonistas de Push,
O leitor
e Flores para
Algernon obtém
conforme a dominam se amplia para uma percepção de mundo e de si.
Flores
para Algernon
narra a história de Charlie Gordon, um rapaz com deficiência
intelectual grave. Ele aspira ser inteligente, mas a deficiência
impede que ele consiga desenvolver novas habilidades, acumular
conhecimento, observar sutilezas, etc. O desejo da sua mãe de que
ele um dia pudesse ser “normal” nunca foi satisfeito, e vemos que
Gordon, apesar de ser amado e zombado em medidas similares por seus
colegas de trabalho, sente isso como um fardo.
“Se
você é intelijente você podi ter muitos amigos pra conversar e
você nunca fica solitário sosinho o tempo todo.”
O
desejo de ver além, de saber mais o impulsiona para a cirurgia
experimental que desejam realizar com ele visando elevar seu QI. E
é através da linguagem que Charlie usa, saindo dos erros
gramaticais e evoluindo aos poucos para construções sintáticas
mais complexas, que percebemos quão longe ele vai, pode ir.
Entretanto,
não é como se tudo pudesse ser flores: em vários momentos do
livro, a história da Árvore do Conhecimento é abordada. Na
narrativa bíblica, quando comem do fruto, Adão e Eva tem o mundo
revelado – e sentem vergonha ao se perceberem nus. No caso de
Charlie, isso ocorre em duas frentes: os demais e ele.
“Cada
vez que penso em Gimpy roubando do sr. Donner, quero quebrar algo.”
“Saber
isso [estar vulnerável] intelectualmente não ajuda. […] Eu
caminho pelas ruas durante todas as horas do dia e da noite, sem
saber o que procuro...”
Fica
claro na leitura que Charlie pode ser um gênio, mas seu
amadurecimento emocional ainda é inexistente. A leitura que ele
fazia do mundo antes, idealista, se choca com o caótico do
cotidiano. Como processar diferentes perspectivas das vidas alheias
em uma visão aglutinadora? Um símbolo dessa desconexão é seu
colega de cirurgia, o rato Algernon, a primeira cobaia. Ele está ali
com Charlie para lembrá-lo – e o leitor – de que o ser humano
ainda é um animal instintivo e emocional, que não pode simplesmente
ignorar o que passa em si, suas necessidades, para se devotar à
racionalização de tudo.
A
essa altura, o romance ganha tons de romance de formação,
principalmente quando Charlie pesa cada vez mais sua história e o
que ela representa pra ele – não há como ele desvincular o
Charlie de antes com o de agora.
“Você
quer ser um adulto, mas ainda há um garotinho aí dentro.”
“Quem
e o que sou agora? Eu sou a soma da minha vida ou apenas dos últimos
meses?”
E
como no romance de formação, há dois pontos clássicos nesse tipo
de trama que temos claro aqui: a desilusão com o mundo de aparências
e o amadurecimento pelo amor.
No
caso da desilusão, ela progride de seus colegas de trabalho –
quando percebe que zombavam dele no passado e agora têm medo do que
ele pode fazer, tendo sacudido as certezas que eles tinham sobre o
mundo – aos cientistas envolvidos no experimento – há momentos
em que ele fica chocado ao perceber que sabe mais que os homens que o
tornaram inteligente. É o momento em que a fachada e as certezas da
palavra alheia caem por terra.
No
caso do amadurecimento pelo amor, é o encontro amoroso com Alice e
Fay, com quem ele experimenta amor e desejo sexual, que faz ele
entender melhor quem é o outro, que lhe incute empatia. Um dos
trechos mais belos do romance – longo demais para ser postado –
mostra um momento de êxtase sexual em que o protagonista sente como
o mundo se tornando claro para ele – provavelmente o trecho foi
inspirado na leitura de Carl Gustav Jung e sua teoria sobre a
individuação. Uma vez expulso do “Paraíso”, Charlie pode criar
um próprio – assim acredita ele.
Flores
para Algernon reforça
a necessidade da linguagem para o indivíduo mas também lembra que a
limitação de seu uso não dá a medida do “não humano”. A
passagem de Charlie por um sanatório reforça ainda mais nele a
aceitação de quem foi e de que o valor de seus sentimentos e
anseios antes é tão válido quanto os que detém após sua cirurgia
– o ser humano se basta pela sua existência, não pelo quanto que
pode produzir
– uma lição necessária num mundo que racionaliza absurdos com
base na “utilidade” dos seres e das coisas.
Daniel
Keyes
(1927-2014) foi um dos mais aclamados escritores norte-americanos de
ficção científica. Apesar de ter escrito diversas obras do gênero,
sua contribuição mais famosa ainda é Flores
para Algernon,
adaptada diversas vezes, sendo a mais conhecida o filme Os
Dois Mundos de Charly,
que rendeu a Cliff Robertson o Oscar de Melhor Ator. Outra obra
famosa de Keyes é The
minds of Billy Milligan,
um estudo de caso real sobre um homem com múltiplas personalidades.
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