Resenha dupla: Fera adormecida (Kemono no nemuri), 1960 / Tudo vai mal (Subete ga kurutteru), 1960
De
21 de janeiro a 9
de fevereiro de 2019, o Instituto Moreira Salles de São Paulo
exibe a Retrospectiva
Seijun Suzuki, com apoio da Japan Foundation. Seijun Suzuki foi um
dos diretores mais iconoclastas
do cinema japonês e seu impacto pode ser observado no cinema de
diretores como Jim Jarmusch e Takeshi Kitano.
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Fera
adormecida
Junpei
Ueki está
prestes a se aposentar e
volta para o Japão após uma temporada a trabalho em Hong Kong. Sua
família, que não o vê há anos, aguarda seu retorno fortuito –
aparentemente ele se deu bem no trabalho. Entretanto, alguns dias
depois, após a festa de despedida no trabalho, ele desaparece. A
filha, Keiko, pede a ajuda de um amigo – por quem está
visivelmente apaixonada -, o jornalista Shotaro, que ao longo da
investigação vai encontrando corpos de fieis de uma seita popular
no país. Contudo, Junpei volta e tenta agir como se não tivesse
ocorrido nada grave – mas Shotaro nota que tem alguma coisa
estranha nesse desaparecimento.
Seijun
Suzuki
já era prolífico nessa época, mas foram filmes como Fera
adormecida
e Atire
na viatura
– infelizmente não pude ver ainda – que tornaram seu nome
conhecido. A trama de Fera
adormecida é
algo que poderia ser extraído de um conto policial americano – o
intrépido repórter que tropeça numa aparente conspiração, a qual
nem a polícia tem conseguido desvendar ou desbaratar. Também a
trilha e a cenografia assumem a influência do noir
americano em seus jogos de sombra e trilha sonora, na forma como a
câmera estabelece uma conversa com primeiro e segundo planos de
forma fluida – a cena em que Shotaro e Keiko seguem um casal até o
motel e depois outra em que Shotaro ignora Keiko conversando com
outro jornalista -, as sequências longas de diálogo sem cortes –
Shotaro e Keiko conversando sobre o que faz homens bons tomarem
atitudes precipitadas, Shotaro tendo que conversar com várias
pessoas diferentes na mesma tomada -, câmeras que ampliam o escopo
da cena, sequências
de flashback
que não retiram a personagem que narra de cena – aliás, um truque
bem interessante pois garante a “fidelidade” à percepção
subjetiva -,
tudo isso demonstra que Suzuki estava atento ao estilo
cinematográfico americano, fazendo muito com pouco à la Samuel
Fuller e Orson Welles.
Suzuki
também faz uso de registros simbólicos mais claros para estabelecer
o clima noir,
como na cena em que Keiko descobre que o pai desapareceu – ela sai
do vidro fosco da porta para o enquadramento claro da câmera, o que
indica que ela está começando a ver Junpei mais claro agora -, a
cena à margem do rio já comentada mostra um país que vai se
reconstruindo, as tomadas nos templos populares são barulhentas para
informar o caos da conspiração a Shotaro, etc. Também é
significativo como Shotaro precisa ir às favelas japonesas e boates
para compreender o que está havendo – para entender
o que move a conspiração, é preciso ir às camadas inferiores da
sociedade, descobrir de onde vem e o que faz essa fera não mais
adormecida.
Entretanto,
preciso dizer que o filme, exceto pelo final, lembra muito Homem
mau dorme bem,
de Akira Kurosawa. Se lido como filme de gênero, Fera
adormecida é
apenas a história de um homem de respeito com interesses escusos –
aliás, muito bem interpretado por Shinsuke Ashida, que sabe como
usar a expressão corporal em momentos emocionais diferentes da
personagem -, mas assim como a obra de Kurosawa, há uma exposição
do que se tornou a sociedade japonesa: que um senhor de idade precise
se ver envolvido com o crime, relacionado com uma religião, soa como
uma crítica à forma como o próprio Japão comprou a ideia da
guerra anterior. Não à toa é tão impactante a cena em que Junpei
resolve plantar sementes no jardim à noite – que legado os mais
velhos deixaram para a juventude japonesa além da ocupação
americana e o florescimento do crime?
Mas
se Suzuki já mostrava ser um ótimo diretor no cinema de gênero, o
que acontecerá quando ele resolver dar um passo além e mostrar que
quer ser experimental pra valer? Bora ver Tudo
vai mal.
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Tudo
vai mal
O
exploitation
é um gênero cinematográfico que surge nos anos 1930 e que vive do
sensacionalismo e apelação do que é apresentado. A ideia original
é expor algo de forma tão extrema que o público aprenda que a
moral é não reproduzir certos comportamentos, mas ao longo do tempo
se tornou uma estética onde o público tinha aquilo que pagava – a
exposição do mau comportamento servia como uma válvula de escape
em uma sociedade restritiva. O mesmo ocorre no Japão em que a
criminalidade juvenil é representada de forma exagerada, como a
servir de alerta para a sociedade e conscientizar a juventude
japonesa. E eis que entra Seijun Suzuki em cena para fazer um filme
no gênero. Mas será que é
esse mesmo o caso?
Quando
Tudo
vai mal
começa, percebemos que há algo estranho acontecendo: tiros, bombas,
tanques, homens em uniformes militares. Por que o filme não pode ir
direto ao universo dos protagonistas? Porque precisamos entender uma
coisa antes: aquele filme de guerra que o protagonista está vendo
conosco é o que tornou a sociedade japonesa no que ela é na época
de Suzuki: um país que vive sob ocupação americana física e
cultural, onde os fabricantes de armas enriqueceram apesar da derrota
e milhares de famílias perderam seus chefes de família, tornando a
vida difícil para as viúvas, muitas delas tendo que se prostituir
para prover o sustento em casa. Sem referências masculinas ideais –
porque o fato de a sociedade ter mantido a respeitabilidade para com
quem lucrou com a guerra aponta uma hipocrisia -, os adolescentes se
veem entre tomar parte no crime ou reconhecer que precisam abandonar
seus entes queridos se querem prosperar.
Embora
o filme tente abranger diferentes personagens dessa juventude
problemática – um exemplo é a subtrama da jovem Etsuko, que é
deixada de lado pelo namorado e precisa de dinheiro para fazer um
aborto -, o filme foca mais em Jiro, cujo pai morreu na guerra por
conta de um tanque defeituoso fabricado pela empresa do atual amante
de sua mãe. Nesse microcosmo vemos como a sociedade japonesa está
fragmentada: os jovens tendo que lidar com o legado dos mais velhos,
que mantém o controle apesar de tudo que fizeram. A rebelião de
Jiro se volta de forma violenta em vários momentos, seja com sua
mãe, que parece representar a sociedade adormecida, com o amante
dela, jogando na cara seu papel pela atual situação do mundo, e até
com Toshimi, que é apaixonada por ele – para ele, é impossível
querer felicidade em um mundo onde a hipocrisia está tão exposta
claramente.
O
que se segue das atitudes de Jiro é uma sequência de comportamentos
autodestrutivos, como se tudo aquilo que ele quisesse dizer não
coubesse dentro de si. A vida dele espelha o mesmo caos dos soldados
do filme que ele começa assistindo – um desejo de encontrar a paz
de algum modo, mas como se tudo ao redor é um signo caótico que
lembra onde ele se situa naquela sociedade e naquele momento?
E
então entram
os experimentalismos de Suzuki.
Se
em Fera
adormecida
a direção é mais segura pelas convenções de gênero, em Tudo
vai mal
Suzuki resolve que vai desconstruí-lo jogando na cara do público
tudo que ele espera: trilha sonora jazzística, canções em inglês,
perseguições automotivas, violência física, etc., como se a
narrativa fosse construída de colagens genéricas. As
tomadas fluidas, o ritmo frenético dos cortes, as formas como
personagens se cruzam numa mesma tomada sem se perceberem –
ilustrando as coincidências do roteiro - são elementos usados de
forma tão óbvia que o espectador tem a impressão de estar vendo
Acossado,
de Jean-Luc Godard – coincidentemente, lançado no mesmo ano -,
outra obra desconstrucionista, mas do gênero noir.
O
acréscimo está no
olhar de Suzuki, que
demonstra que por trás do evento social que leva ao exploitation
existem problemas reais graves: a afirmação da masculinidade num
meio social inferior – a cena em que Jiro questiona como o filho de
uma gueixa pode aceitar a mãe trabalhar com isso é um exemplo -, o
valor da mulher – a forma como as gangues juvenis abusam de garotas
adolescentes como ritual de aceitação -, e
a exploração dos desafortunados para o entretenimento – mesmo que
o amante da mãe de Jiro pareça sincero sobre seus sentimentos, o
fato de ele estar uma situação privilegiada em relação a ela, que
o deseja mas também precisa se sustentar, é passível de uma
leitura de prostituição. Aliás, o uso dessa ideia do
“prostituir-se” é jogado na cara do espectador quando a dona do
bar que os jovens frequentam questiona a forma como um jornalista
pretende escrever sobre a história de Jiro – ele alegar que é
assim que se vende uma narrativa é uma violação da integridade de
outrem. É
uma amostra de gênero popular e também uma denúncia de quão raso
ele é.
PS: curiosamente, ambos os filmes parecem projetar na imagem do jornalista em cena o papel do diretor - como orientar a narrativa. O final de Tudo vai mal com o jornalista tendo decidido o que vai publicar se assemelha do de Shotaro em Fera adormecida ao pensar sobre como sua reportagem será publicada no fim. Ambas as personagens sabem que estão fazendo concessões para a manutenção de uma ideia de normalidade, o que os coloca em conivência com a sociedade que permitiu que a situação crítica em ambos os filmes viesse à tona.
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